sábado, 31 de dezembro de 2011

Um não-cartão


Em 2011 eu... Me mudei de casa. Adotei um gato. Bati o carro. Lutei por um antigo amor e, quando consegui, descobri que não era isso. Estive do outro lado do mundo. Cortei o cabelo. Doei sangue. Subi a Pedra da Gávea. Mergulhei na Grande Barreira de Corais. Fiz tatuagem. Me formei em teatro. Casei minha melhor amiga. Me apaixonei. Pensei em mudar de cidade. Aterrissei em Bali sem dinheiro no bolso. Fiz amizade com mendigo. Quis virar mendiga. Fiz rapel descalça e com short de pijama. Aprendi a fazer arroz. Tive dread no cabelo. Dormi em aeroportos e McDonalds 24horas. Voltei à Yoga.

E, sobretudo, fui tão, tão feliz. E acabei atropelada pelo tempo e não conseguindo enviar cartões às pessoas queridas.

Mas quero registrar minha gratidão a todos que estiveram em minha vida. Aos que me abrem as minhas portas e me ensinam sobre mim. Aos que me permitem os mergulhos. Aos que me elevam. A quem sempre lembra. A quem sempre está. A quem está de vez em quando. A quem eu gostaria que estivesse. A quem me apoiou nos projetos acadêmicos e poéticos. A quem me vestiu com máscara de minha mesma face, para que eu me tornasse personagem. A quem me fotografou com as lentes da arte. A quem me pintou com cores vibrantes. A quem me escreveu com doçura inventada. Peço perdão aos que não consegui amar. E devolvo amor aos que não me amaram. Lembranças aos que encontrei pelo mundo. Força aos que me apoiaram, sobretudo nas loucuras. Aos que me ouviram. Aos que me enxergaram.

Um 2012 de enxerga. De escuta. De amor.

Um 2012 de loucura e de arrebatamento.

De mergulhos e escaladas.

Sigamos.

O mundo vai começar...


quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

No fim...


Virou moda nas redes sociais postar cápsulas de auto-ajuda sem critério. Imagens com mensagens que dizem como se deve agir e o jeito certo de encarar o mundo. É verdade que às vezes, dependendo do tamanho do absurdo, eu me divirto e até me irrito. Mas normalmente costumo ignorá-las, mesmo que façam algum sentido. É que nunca aceitei que me apontassem caminhos.

Por isso me espantei ao perceber que uma dessas frases, postadas por alguém, continuava rondando meus pensamentos por dias e dias. Havia aqueles que concordavam, curtiam e compartilhavam. E eu não consegui parar de pensar: "Então se acredita nisso?" Eu não acredito.

A mensagem falava sobre decepções e terminava assim: "No fim, é você e Deus. E não você e as pessoas."

Que me perdoem meus amigos cristãos, mas pra mim esse "você e Deus" soa como "você sozinho". A não ser que...

A não ser que por Deus se nomeie o mundo. Que ele seja tudo. O bem e o mal, que não existem. O claro-escuro. Os seres todos. As pessoas, inclusive.

Todos os dias quando acordo (eu sei que dá vontade de cantar "não tenho mais o tempo que passou", mas não, não é isso) eu tenho o meu tempo de me entender viva. O tempo de me sentar na cama e perguntar: "Por quê?" É um "por que tenho de me levantar?" e a resposta pode ser o pão com manteiga (sempre acordo faminta), um sol e uma bicicleta, um compromisso de trabalho ou um alguém. Mas eu sei que meu diário "por que hoje?" no fundo é um permanente "por quê?" Por que vida?

Que esteja talvez errada minha interpretação, mas se "eu e Deus" for eu sozinha e "eu e as pessoas" for eu e o mundo, eu fico com as pessoas. Eu sempre ficarei com as pessoas, mesmo que elas me decepcionem diariamente e eu, também, as decepcione com frequência. Mesmo que estejam de passagem, eu fico com as pessoas. Eu fico com o amor. Mesmo que ele morra e renasça transfigurado. Mesmo que doa.

Porque eu não vejo sentido na vida se não o de acrescentar à Vida, aquela outra, que é muito maior.

Eu sei. Eu sei que depositar o sentido da própria existência nos outros (nunca é apenas um outro imutável) nos faz frágeis. E eu sei que de fragilidade é feita toda terra por onde correm os rios. É o deixar-se perfurar que nos nutre. Por isso fomos feitos de vazios, para que nos deixemos atravessar.

E entre as tantas formas de amor em que já me transfigurei, não me lembro de ser tão fácil levantar da cama plena de sentido como quando fui mãe-tamanduá. Havia um filhote para alimentar e ensinar a ser. Havia uma vida para entregar, sendo, ao mundo. Responsabilidade de fazer com que vida seja, torna simples entender por que se é. Eu era.

Eu em mim seria um bloco sólido. Amor nos torna perpassáveis. Eu me quebrei em pedaços, mais uma vez, quando soube da morte daquela bebê tamanduá. Ela que me fez mãe. E a dor me fez pó, areia, terra. Mas, porque posso me despedaçar, é que as árvores em mim se enraizam. Isso é vida.

No fim, eu nunca é só eu.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Eu acredito em Papai Noel


Quando pequena, eu temia ter insônia na noite de Natal. Isso porque meu pai dizia que Papai Noel só aparecia quando dormíamos. O velhinho barbudo tinha desses poderes, para saber se estávamos acordados e para entrar por qualquer fresta. É claro que ele, sendo esperto, entrava pela varanda, que era larga e podia abrigar seu trenó com quantas renas, duendes e presentes ele quisesse trazer. Quando abríamos os olhos, pela manhã, lembrávamos que era Natal e corríamos para a árvore montada na sala, sob a qual nos aguardavam os brinquedos.

Certa vez havia vários presentes debaixo da árvore: uns brinquedos, um disco da Angélica, camisetas personalizadas do Garfield (na minha havia escrito "I love lasagna", pois desde criança eu tinha fama de gulosa). Corremos para mostrar aos nossos pais. Meu pai dizia que era improvável que Papai Noel trouxesse tantos presentes e, virando-se para minha mãe, perguntava se ela não tinha posto alguns ali. Para mim aquilo era a prova mais concreta da existência do velhinho. Eu usava tal argumento em todas as discussões com as outras crianças do prédio, que duvidavam de sua existência: "Se fosse mentira, meu pai nunca acusaria minha mãe!"

Eu tinha dez anos de idade quando ganhei o último presente do Papai Noel. Era uma maquininha de tricô. Eu fiquei fascinada com o brinquedo, com que fiz muitos vestidos para a Barbie, gorrinhos para bonecas e centopeias estufadas. Um dia um amigo do meu pai apareceu em casa e me pediu para ver meu presente de Natal. Enquanto lhe mostrava, orgulhosa, ele comentou: "Eu que ajudei seu pai a escolher", ao passo que meu pai lhe dava cotoveladas, sussurrando: "Papai Noel... Papai Noel..." Hoje desconfio que meu pai deve ter encomendado com seu amigo aquele momento de desencanto, afinal, ter uma filha que ao dez anos ainda acreditava em Papai Noel podia ser preocupante.

Voltando à tenra infância...

Ao lado do nosso prédio, havia uma casa onde morava um casal de velhinhos, que carinhosamente chamávamos de vovô e vovó. Tocávamos a campainha em bando, eles vinham nos receber e nos davam balinhas. Saíamos correndo, doces e selvagens.

Por isso, por mais que caluniem Papai Noel, dizendo ser o símbolo do capitalismo, do consumo desenfreado e haja até quem diga que ele é invenção da Coca-Cola, não há quem me faça desacreditar no velhinho bondoso, que passa o ano fabricando brinquedos só para alegrar as crianças no Natal. E, por mais que diariamente eu seja esbofeteada com a violência cotidiana, eu insisto em acordar todos os dias acreditando na bondade ilimitada.

Foi, pois, aos dez anos de idade que me foi revelada a fonte dos presentes que apareciam sob a árvore. Mas foi-me ensinado desde muito pequena que Papai Noel é mágico, que ele sabe quando estamos adormecidos e sabe entrar por qualquer fresta. E coisas mágicas não requerem explicação. Eu creio em um mundo bonito, em pessoas boas, em um querer-bem universal. Eu acredito em milagres.

E eu, sobretudo, acredito em Papai Noel.

domingo, 20 de novembro de 2011

Das flores de plástico


Eu estava na cama, quando ouvi minha mãe chamando:

- Lian, você está dormindo?

Estava.

- Você voltou tarde ontem?

Voltara.

Ela então parou na porta do meu quarto e anunciou que uma senhora, amiga da família, havia falecido, e perguntou se eu ficaria dormindo ou iria com meus pais ao enterro. É claro que eu ficaria dormindo.

Eu fora a um enterro na vida: o do meu avô, quando eu era criança muito pequena ainda. Depois disso, a cada vez que as situações me convidavam ao cemitério, eu me trancava no quarto. Era minha forma mimada de dizer que eu não sou conivente com a morte. Não, eu não a deixo se aproximar.

Mas aí, já acordada, fiquei rolando na cama, a pensar que talvez fosse hora de crescer. "Desculpem, mas se morre", Clarice joga em minha cara. E eu viro o rosto de lado e respondo, mãos na cintura: "Não, não se morre!" E quase mostro a língua.

Foi, pois, ali, deitada na cama, que minha criança pariu uma adulta. E se puseram a conversar. Era preciso que a adulta puxasse a criança pela mão. "Mas se existe amor..." Eu nunca entendi como amor e morte podem existir em uma mesma realidade. Eu não entendo. Nem minha adulta entendia, mas era preciso coragem para pisar no azulejo e dar um primeiro passo no mundo. Demos. Nós três, de mãos dadas. A velha criança, a adulta recém-parida e esse ser desconhecido que está no meio disso tudo.

Sim, a minha adulta levou a criança ao cemitério e me mostrou: "Está vendo que se morre?" Eu olhava as outras crianças no velório, levadas pelos pais. Elas aproximavam-se do caixão, curiosas. Nós, crianças, boquiabertas de espanto.

É que sou muito pequena. Não sei entender a finitude. Não sei me proteger da dor dos vivos sem me transbordar toda de dor, também. É que sou pequena. Preciso que me garantam que os meus serão sempre vivos, porque não sou mais do que são. É porque sou tão pequena, não apaguem as luzes. Tenho medo da escuridão.


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Dia de chuva


Quando o ônibus entrou na cidade, eu desejei ficar dormindo. Eu vi o vidro embaçado de chuva, o céu pintado de cinza. E eu quis pedir ao motorista que não parasse. Que seguisse, seguisse sempre, sem traçar um trajeto. Que fosse simples, que fosse reto, talvez.

Se não fizéssemos desvios, poderíamos cair nos buracos, quem sabe atropelar inocentes, pelo caminho. Quem sabe. Eu quis não saber. Não descer na cidade chuvosa. Não acordar. Atravessar adormecida o continente. Cair no mar.

Seria engraçado despertar no fundo de águas escuras com alguém me puxando pelo ombro a perguntar: "quem é você? quem é você?..." Assim, repetidas quatro vezes. Eu ficaria confusa e, durante um momento, não saberia dizer a quem seria direcionada a pergunta: a mim ou ao anjo em minhas costas? E no final não importaria muito, pois que esse anjo sem braços, mas alado, de tanto me proteger, teria feito de mim escudo. Eu, meu muro. Mas como pode um anjo amputado te alcançar?

Se eu fosse sol, saberia iluminar águas escuras até que elas transparecessem. Saberia me guiar no mar profundo. Brincar em tons de azul. Criar arco-íris no mar. Se eu fosse sol.

Mas o ônibus adentrou a cidade enfeiada de cinza e eu não pedi ao motorista que seguisse. "Você não concorda que o tempo está inóspito?" Eu concordava, mesmo que em outra ocasião. E eu chovia pequeno, que é meu modo desajeitado de ser delicada. Porque o que eu queria mesmo era ser sol para encher de luz todas as profundezas inacessíveis do mar. Mas, se vim chuva, por que não dilúvio?

Quisera eu te transbordar.


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Excessos e exceções


Universo tem um jeito peculiar de rir da minha cara.

Ontem eu reclamava por receber amor em forma de excessos: produtos de consumo. É assim: para me verem feliz, as pessoas me enchem de coisas. Guloseimas e bibelôs. Eu sei que o fazem com a melhor das intenções. Dar amor em forma de coisas. E elas esperam. Esperam que eu tome o sorvete. Que aceite mais um pedaço de bolo. Que sorria com o brinco novo, com o chaveiro novo, com um sorriso novo. E, porque elas esperam, eu engulo um pouco mais de amor em seus excessos.

Mas eu não quero guloseimas e bibelôs.

Eu quero amor em forma de amor. Presença. Palavra. Silêncio.

Hoje Universo atendeu a meu pedido. Ele veio. Ofereceu amor. Simples e pobre.

Cheguei ao calçadão da praia, para esperar uma amiga. Havia um banco, com um mendigo sentado em um dos cantos. Apoiei a bicicleta e me sentei do outro lado. Tirei o celular da bolsa, para mandar mensagem. Ele observou. Tirou um controle-remoto de sua sacola. Sentou-se mais perto:

- Você me ensina a usar este celular? - mostrando o controle-remoto.
- Ih, desse seu eu não sei usar, não.
- Não sabe não?
- Não.
- Será que vira nave?
- Acho que não.
- Aperte um botão.

Apertei.

- Não virou nave. - observei.
- É, não virou. (pausa) Eu queria ter um aviãozinho, para voar por aí.
- Eu também queria.
- Uma asa-delta.
- É...

- Você é civil ou militar?
- Civil. E o senhor?
- Eu também sou civil.
- Ainda bem, né?
- Muitos militares morrem, né?
- Eu não gostaria de ser militar, imagino que o senhor também não.
- Eu gostaria de ganhar dinheiro, não importa como. (pausa) Como você ganha dinheiro?
- Eu trabalho.
- O que você faz?
- Hum... Sou jornalista.
- Mesmo? Me entrevista. Este é o microfone (me apontando o controle-remoto).
- Sem microfone.
- Está bem.

- De onde o senhor é?
- Da Tchecoslováquia.
- Ãhn. O senhor tem filhos?
- Tenho.
- Quantos?
- Que eu tenho certeza, só um.
- Conte-me uma coisa interessante, qual a coisa mais marcante que aconteceu com o senhor?
- Te conhecer!
- Mentira.
- É verdade.
- Então a segunda coisa mais interessante.
- Eu cheguei em uma janela, uma janela enorme, você precisava abri-la para ver toda a felicidade e o rosto de Deus.

- O senhor é religioso?
- Sou.
- De que religião?
- Eu acho boas todas as religiões.

Minha amiga não chega, eu começo a me agitar, pego o celular novamente. Ele lê:

- Sony Ericsson.

Fico espantada por ele saber ler.

- O senhor estudou?
- Estudei.
- Por quanto tempo?
- Fiz nove faculdades.
- De quê?
- Acupuntura. Macrobiótica (juro que ele falou isso!)...
- Qual foi seu curso preferido?
- Vulcanologia.

- Quais vulcões o senhor conheceu?
- Todos de todas as capitais do Brasil.
- E qual o mais violento?
- O da Itália.
- Mas esse não é do Brasil.
- Marataízes.
- É esse o vulcão mais violento do Brasil?
- Não, o mais violento é o de Nova Iguaçu.

- Qual o maior mal do mundo? - dessa vez é ele quem me pergunta. Tenho vergonha de lhe falar da desigualdade, da miséria, da fome.
- Violência. Ódio. As pessoas se matando.
- Eu também acho! - ele estufa o peito, triunfante.

- O que o senhor faz por aqui?
- Tento conseguir uma casa pra morar.
- Como é a casa em que o senhor gostaria de morar?
- Aquela ali. Casa de Cultura Laura Alvim.
- O senhor gostaria de morar lá? Nossa, é uma casa enorme.
- É mesmo, dois andares.

- Onde o senhor gostaria de conhecer?
- Gana. Camarões. Indonésia. E você?
- Grécia.
- Eu sou de lá!
- O senhor me falou que era da Tchecoslováquia.
- Da Tchecoslováquia é minha identidade. A minha cor. Tchecoslováquia fica na África, né?
- Não, na Europa.
- Mas são pretos.
- São branquelos.
- Mas tem pretos?
- Deve ter, mas não são maioria.

- Você tem namorado? - ele me pergunta.
- Tenho.
- Me dei mal.
- É.
- Você gosta de beijar?
- Só o meu namorado.
- Mas namorado não precisa ser só um, né?
- Precisa sim.
- Você me acha bonitinho?
- Acho.
- Me beijaria?
- Não.

Ele se aproxima um pouquinho mais. Fecha os olhos e faz um grande bico, querendo me beijar. Dou um pulo do banco.

- Então, minha amiga está chegando, preciso ir.

Saio arrastando a bicicleta, sem saber pra onde. Entro na ciclovia e começo a pedalar, atordoada.

Eu pedi amor sem excessos. Universo se encarregou de enviar. Ele sempre me apronta dessas.

Ele ri de mim. Eu rio junto.

Coisa de bons amigos.

domingo, 25 de setembro de 2011

O Vazio


Hoje ele amanheceu anunciando que ainda havia o Vazio.

Depois de tanta gente, cerveja, picanha, costela, lombinho, abacaxi, caipirinha em copo gigante e eternos infinitos para uma noite. Tínhamos um churrasqueiro conhecedor profundo dos segredos da carne e da alma. E, quando perguntávamos sobre os cortes e as receitas, ele explicava que isto era felicidade, isto era vida, e falava sobre a adolescência da brasa.

Hoje acordei tarde com o movimento das pessoas debandando. Dos poucos que ficaram, um deles anunciou: Sobrou o Vazio.

Explicaram-me que Vazio era um corte de carne. Mas eu achei bonito isso, alimentar-se do Vazio.

Então eu preguiçosamente espero o almoço ficar pronto, enquanto escuto a movimentação na cozinha.

Como se atinge o ponto do Vazio? Eu não sei. Assim como não entendo as receitas da felicidade e da vida. Também a adolescência em brasa tanto me confundiu que me envelheceu. Não, eu não sei os segredos da carne. Os da alma, sei menos ainda.

Mas, com gratidão, aceito o domingo e seu Vazio.


quinta-feira, 22 de setembro de 2011

23 de setembro


Antes de mim, já havia ela. Foi ela quem embaralhou o mundo inteiro para aguardar minha vinda. Quem chega com a primavera não pode ser simplória. Não ela. Que me abria o mundo com seu olhar afiado, desafiando o senso comum, as pessoas comuns, as coisas comuns. Comum? Não ela.

Ela que criava brincadeiras trágicas, que matava a Barbie das mais diversas maneiras, que levava cavalos para a garagem do prédio. Ela que pintava carrapatos e quadros belos e intrigantes. Que escrevia poesia desde muito cedo. Que me contava o destino dos poetas, uns reais, outros inventados, e abria feridas que para sempre doíam.

Ela que, ainda na infância, pedia que nossa mãe lhe comprasse livros sobre mutações genéticas. E vinha me mostrar, fascinada, fotografias de pessoas deformadas, cheias de bolhas, que eu me recusava a ver. Ela que nunca fechou os olhos para o fundo do fundo das coisas.

Ela que se deixava transbordar de mundo, que se se deixava cortar na carne pela arte e pelo amor. Em sua forma usual e na forma avessa. Que chorava aos soluços com as músicas na vitrola. Que se indignava com os livros de infância e o bonequinho doce fugindo.

Ela que me assustava com histórias sobre as bonecas. Que, em vez de "boa noite", dizia "cuidado", antes de apagar a luz. Que me chamava para dormir com ela e, no meio da noite, me expulsava da cama.

Foi ela que, num 23 de setembro, trouxe a primavera. Para que, quando eu chegasse, eu tivesse essa delicadeza, não do que é suave, mas de quem enxerga o entre-espaço milimétrico entre dois tons. A vida de dentro da vida que não se vê.

O cachorrinho da Barbie sempre morria. Sempre morria. Eu não sabia. Mas estava vendo vida nascer.

Prateada


Não há uma molécula de mim que não seja exatamente eu. Engraçado pensar isso em uma circunstância dessas. O cérebro querendo pular para fora do crânio. Há três dias. Dói pacas. É assim que ele reage após uma semana acordado, trabalhando dia e noite. Mas essa também não sou eu? Essa que, ao ser pressionada, se joga contra as paredes, tentando escapar?

E de repente aqui me encontro, aprisionada entre a cama e o sofá. Às vezes, em um esforço sobre-humano, vou ao mercado, à farmácia. Ontem fui ao parque, queria ler meu livro sob uma árvore. Na volta, doía tudo. Mas ainda assim eu gosto de olhar as pessoas e sua eterna novidade. Aqui na Rua do Catete tem um novo garoto prateado. Ele é engraçado, porque definitivamente não nasceu para ser prateado. Tem gente que nasce, sim. Não é o caso. Outro dia o vi andando bêbado, cambaleante. Então menino prateado também fica bêbado?

Cena mais bonita eu vi ontem, na mesma rua. Mendigo andando, jovem e negro, um pé descalço, outro com uma meia. A calça amarrada na cintura, para não cair. Ele passa e joga uma moeda para a velhinha, sentada na calçada. Mendigo dá esmola para outro mendigo? E eu, que quase não dou. Outro dia, voltando de Niterói, tive vontade de dar dois reais a um velhinho na Praça XV. Ele sorriu e agradeceu tanto, que me senti quase egoísta, sabendo que dar aos outros é um bem que faço pra mim.

Esta noite sonhei que um bando me perseguia, enquanto eu fugia a cavalo. Passei na frente do meu prédio de infância, gritando por ajuda. Lá, recusaram-se a me ajudar, não por má vontade, mas porque era meu dever me virar sozinha. Acordei com crise de tosse, cabeça pesada. Lembrei de quando passei mal naquele barco, na Austrália, rumo à Barreira de Corais. Eu esperava que alguém tirasse da cartola uma solução. Que alguém me dissesse o que fazer, me entregasse um comprimido mágico, qualquer coisa. E me dei conta disso: É problema meu. É meu dever aguentar.

E, com o corpo dolorido, a garganta queimando e a cabeça explodindo, eu aguento. Eu não só aguento. Eu sou feliz. É esse meu trunfo e minha vingança. E, mesmo que nenhuma outra pessoa no mundo seja responsável por mim, e que ser feliz seja meu problema e meu dever, é a todas as pessoas que eu devo isso: essa súbita crença que eu tenho no homem. É porque eu olho ao redor e vejo pessoas generosas, prateadas e poetas.

E de repente a dor que eu sinto não filtra a beleza do mundo.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Diálogo tepeêmico


Eu e Leilane acampadas na sala, vibe "Into the wild". Eu desabafo:

- Eu estava pensando seriamente em virar mendiga, mas existem alguns empecilhos.

- Como assim, virar mendiga?

- É, virar mendiga. Mas tenho pensado aonde posso ir sem correr o risco de ser estuprada. Ser mulher é f.

- É, é tão mais difícil ser mulher!

- Homem pode ir a qualquer lugar, fazer o que quiser. Se não tem dinheiro, não tem com que se preocupar. Mulher não.

- Mas, Lian, não é muito melhor virar hippie?

- Não, não quero ser hippie. Quero ser mendiga.

- Pensa bem, você pode ir morar em uma comunidade hippie, plantar, fazer artesanatos. Como mendiga, você fica presa à cidade.

- Boa ideia, posso ser mendiga no campo.

- Isso não é mendiga, é hippie.

- É índia. Posso fazer algo do tipo "Comer, rezar, amar", mas na variação "mendiga, hippie, índia". Eu gostaria de ser índia, mas acho que não posso assim, sem uma... permissão.

- A-hã. Você vai até a Funai e diz que quer uma permissão para ser índia?

- Deve ser permitido só para antropólogos, essas coisas.

- Acho que se você for a uma aldeia de verdade, tipo, na Amazônia, eles te aceitam.

- Eu já tenho cara de índia. Posso chegar e dizer "voltei, vocês pensaram que eu estava morta, mas estou aqui". Alguma criança deve ter morrido anos atrás, né?

- É, mas o que eles fazem? Eles enterram? Como você vai explicar que saiu de baixo da terra?

- Eu digo que me acidentei, perdi a memória, sei lá. Mas em vez de Amazônia acho mais fácil chegar ao Pantanal, que é mais perto.

- E como você pretende chegar ao Pantanal?

- De carona, ué. O problema é não ser estuprada no caminho.

- Nesse caso, Pantanal, Amazônia, é tudo a mesma coisa.

- É um problema isso... Por que não existem muitas mulheres caminhoneiras?

- Exatamente por isso.

- Com mulheres caminhoneiras nós poderíamos pegar carona sem medo.

- Mas elas também têm medo, porque têm que passar muito tempo na estrada sozinhas. Mas dá pra pegar carona com casal, é seguro.

- É, mas casal não dá carona. Eu viajando em casal não daria carona, pois gosto de privacidade.

- Casais mais velhos, talvez.

- Talvez eles me dessem carona se eu não fosse mendiga. Mas eu quero ser mendiga. Você colocaria em seu carro uma mendiga fedendo?

- Urgh, não. Mas tem que feder? Você não pode tomar banho?

- Não. Tem que feder. A ideia é estar do outro lado, entendeu? O outro lado... Sei que não é fácil. Sou dependente de algumas coisas. Tipo... pílula, papel higiênico.

- Está vendo? Até nisso é mais fácil ser homem.

- É... droga... Pena que o Brasil não é o melhor lugar pra ser mendiga. Acho que em países mais seguros...

- Você não queria viajar? Por que não vai ser mendiga em outro lugar?

- Ainda quero viajar muito. Por isso não posso virar mendiga em outro país, não quero ter problemas com vistos, passaportes.

- Você pode ir pra um país da América Latina.

- É mesmo. Existe algum país bem seguro, onde haja menos chance de estupro?

- O Uruguai! Dizem que lá é bem seguro.

- Mesmo? Que bom... vou pesquisar esse assunto.

- Deixa eu ver aqui... (ela entra na internet) Hum... taxas de estupro... Não estou encontrando muitas informações.

- Aposto que eles não têm muitos sites para orientar mendigos.

- Você tem razão, não têm.

- Já sei! Vamos criar um blog - guia para mendigos? É uma deficiência da internet, não ter esse tipo de informação.

- Você pode publicar um livro.

- Sim, um guia para mendigos! Mas será que é possível comprar/vender essa ideia?

- O problema é que ninguém levaria a sério. Teria que ser um livro de comédia. Você conseguiria escrever isso como comédia?

- Veja bem, eu estou até agora falando super sério, mas você vai ter que concordar que nossa conversa é cômica. Difícil vai ser convencer os outros da nossa seriedade.

- É...

- E voltamos ao ponto inicial. Ser mendiga sem ser estuprada. Acho que só se eu chegar bem feia... Não, acho que mesmo assim não impediria... Acho que só aquelas mulheres bem loucas, mas muito loucas mesmo, do tipo que as pessoas têm medo de chegar perto...

- Mas você não é tão louca assim.

- Não, não sou. E mesmo que algumas pessoas tenham medo de mim, acho que o estuprador não terá.

- É, ele definitivamente não vai falar "essa não, porque ela tem cara de brava".

- Eu até pensei se... Não.

- Não o quê? Ser estuprada? Não!

- Sabe... fiquei pensando em qual era o limite. Ficar sem dinheiro seria bom, porque sou muito orgulhosa, não sei pedir ajuda. E não tendo dinheiro eu teria que aprender a pedir. Passar mal, pra mim é um problema grande, não sei passar mal. Ser estuprada... Será que eu aprenderia com isso ou me traria sequelas eternas, traumas irreversíveis? Não. Não.

- Não.

- É. Não. Temos que pensar em um plano de ser mendiga sem esse risco. Porque eu quero voltar, sabe? E eu quero voltar viva e quero ficar bem. Mas meus pais vão me matar, quando eu voltar.

- Se você voltar rápido sim. Mas se você fugir por muito tempo, eles vão ficar tão felizes com a sua volta...

- Vejamos... acho que leva um mês para eles perceberem que eu sumi.

- Um mês? Você acha que leva isso tudo?

- Sim, porque umas duas semanas é normal eu não dar notícias. Do tempo de meus pais me procurarem, minha demora para responder, eles sabem que sou desatenta mesmo... acho que começariam a estranhar depois de um mês.

- Mas os meninos que moram com você não perceberiam?

- Não, ninguém sabe de nada. Eu poderia estar em qualquer lugar, em Goiânia, no Rio. Eu sempre fui acostumada a não dar satisfação para ninguém. Só teria que deixar um bilhete avisando, em algum lugar, para minha mãe continuar depositando o dinheiro do meu aluguel. Até porque fazer a mudança e depois fugir não seria fácil. Mas meus pais realmente vão ficar bravos quando eu voltar. O que é um problema, pois faço questão de voltar viva.

- Mas acho que eles vão ficar tão felizes com a sua volta, que nem vão estar bravos.

- Vão sim. A não ser que eu volte bem debilitada. É até bom, porque preciso mesmo emagrecer.

Sim, tivemos mesmo esta conversa, entre risadas e lágrimas, em uma tarde quente e tepeêmica.

- Agora deixe-me ir, porque tenho algumas coisas pra fazer ainda. Preciso terminar um desenho que comecei, ajudar a fazer o perfil da Karine e criar nosso site para mendigos.

E fui.

domingo, 4 de setembro de 2011

Desaba(fa)r sobre todas as coisas


Acabei de lembrar que é o dia. Hoje é o dia. E de repente as coisas começam a fazer um pouquinho mais de sentido.

Amanhã completo uma semana de volta ao Rio. Desde então tem doído. Literalmente.

Cheguei cheia de malas e com duas opções. A primeira era sentar no chão e chorar. Fiquei com a segunda: fui organizar a vida. Desfiz as malas, lavei roupas, fiz compras, cozinhei. No final do dia meu braço doía tanto, que eu não conseguia movê-lo. Levantei no meio da madrugada, chorando desesperada de dor e impotência. Algum tempo depois escutei um barulho na cozinha. Era o Nel, com insônia. Ele me deu um analgésico e voltei a dormir. Tenho certeza de que atendeu ao meu chamado. Eu acredito em anjos da guarda.

Eu vim com um medo, com um plano e com uma saudade. O medo era estar. Que ninguém se engane, eu não estou voltando para casa. Estou começando do zero, com toda uma vida nova para criar. E, por mais que eu lamente as despedidas e o efêmero, eu sou melhor em partir do que em ficar. Eu sei melhor chegar quando sei que é breve. Eu me apaixonei pelo Rio antes de ir embora e principalmente quando cogitei não voltar.

Aqui estou. Mas não voltei.

Bom tem sido encontrar os amigos, que me reconhecem mesmo quando eu não. Que escutam meus planos, mesmo que a cada dia eu faça um plano diferente. Que me ouvem falar da tristeza sem me acusar de egoísmo. Pois não é isso, a tristeza?

Eles me perguntam e eu diariamente tento explicar que sim, é possível estar com um amigo em Bali e não irmos juntos pra cama. Ou melhor, é possível ir juntos pra cama e só dormir. É possível, sim, a presença ao lado. A amizade. E, porque é amizade, então é amor verdadeiro. De deixar buraco grande.

Um dia eu inventei que não sou o tipo que sente saudades. Não sei com que cara de pau sustentei essa mentira, mas o fato é que acreditei nela durante muito tempo. Então agora é a mim que explico: é possível, sim, esta dor.

Um dia ele achou que as palavras existentes não bastavam para descrever a sensação de deslumbramento. Aquilo era... maravilhoso? Não, era muito mais. Incrível, fantástico, perfeito? O que dizer quando o imenso da vida transcende seu nome? Então ele disse: BALI. Esta era a definição do inefável.

Hoje nós chamamos, um ao outro, de "my bali". A amizade é um amor tão simples que não ousamos tocar em seu nome. "My bali" é a nossa maneira de falar de amor.

Eu vim ao Rio sem voltar. Vim sem saber o que fazer dos sonhos, dos planos de fuga, da fuga dos planos. Mas com essa vaga ideia de transformação. De fabricar, da matéria que sou, amor, arte, liberdade. A maneira mais concreta que encontrei foi doação. Eu vim em crise com as gordurinhas extras adquiridas na viagem. A crise dos 50. Meus primeiros cinquenta quilos, que me pesaram como toneladas de complexos. Mas também a primeira vez em que tive peso para doar sangue. E vi meu sangue fluir para dar continuidade a processo de vida. Também é possível, então. Vida. Da matéria que sou. Isso é bali!

Eu viajei há dois meses, aos vinte e nove anos. Agora não sei que idade tenho. Dói tudo. A dor no braço, que pensei ser tendinite. A do buraco em aberto. A dor nas pernas, de tanto pedalar, tentando alcançar, de bicicleta, a cidade maravilhosa.

Hoje acordei escutando Eddie Vedder. Liberdade. Olhei para as quatro paredes e quis chorar.

Então me lembrei que é o dia, hoje é o dia exato da tpm.

Talvez eu não esteja tão triste assim.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Dos desejos


Quando mais nova, eu costumava dizer que tudo que eu desejava acontecia. Naquela época eu era mais sábia. Em caso de estrela cadente, disputa de cílios ou osso de galinha, meu pedido era sempre o mesmo: FELICIDADE. E felicidade era acontecimento constante.

Eu tinha essa prudência de não fazer pedidos concretos, pois acreditava piamente na força dos desejos. E sabia que aquilo que eu queria - os fatos, pessoas, objetos - não necessariamente me fariam feliz. Mas, quando algo me surpreendia, normalmente algo em que nunca tinha parado para pensar, eu agradecia ao universo. Aquela era a dádiva: felicidade em forma de algo que eu desejava tão profundamente, que nem tivera a ideia de desejar.

Algum tempo atrás eu resolvi nomear felicidade. Ela se revestiu de uma cara específica. Desta vez eu quis. Eu quis tanto que felicidade se conformasse àquilo que eu decidira ser caminho. Eu mobilizei o mundo, os pensamentos, os amigos. Eu concentrei todas as minhas energias na conquista daquilo que eu julgava quase impossível. Até que o impossível aconteceu.

Então eu não quis mais.

Não venham me dizer que a gente só valoriza o difícil, pois não é verdade. Eu sou feliz com picolé de morango, com brisa e com risada de criança. Mas aquilo, aquilo por que eu tanto pedi ... aquilo eu desnudei e não encontrei felicidade.

Hoje, tesoura em mãos, cortei um dos últimos resquícios daquele desejo: a fitinha vermelha do Senhor do Bonfim, que persistia no tornozelo. Ainda me perguntei se poderia negociar com o santo, trocar o pedido, mas não. Não quis querer felicidade nomeada e definida.

Não sei dos caminhos certos.

Eu quero o mundo em aberto.

Amém.

domingo, 21 de agosto de 2011

Austrália - última parte: CORAÇÃO


(O retorno)

Certa vez, por ocasião do fim de uma (im)possibilidade amorosa, uma amiga desabafou: "Ainda bem que terminou da melhor maneira possível. Mas meu medo não era por você, era por ele. Você, eu sei que sai ilesa."

É uma amiga que me conhece a ponto de saber minhas margens. As impossibilidades que eu não aceito, ela prevê. E eu entendo bem o que ela quis dizer. Ela sabe que eu me jogo dos precipícios e sobrevivo.

Mas ilesa, ilesa, eu nunca saí de nada.

Nasci para pedra, madeira, argila. Matéria-prima do mundo para que ele me fira e conforme. Eu tenho essas marcas - tantas - dos lugares por que passei, das pessoas que por mim passaram. São elas que dão meu desenho.

E, porque não quero enrijecer em uma mesma imutável figura, é preciso que eu me permita esculpir. E, porque são as horas mais suaves que causam os sulcos mais profundos, é preciso que eu me deixe amar. E, porque são as fontes que me dão polidez, é preciso que eu possa fluir. E, porque são os tombos que me aparam as arestas, é preciso que eu me deixe lançar.

Eu me lancei nos dias, nos sabores, nos caminhos, nos encontros. Eu quis experimentar o possível, porque gosto de banheiros limpos, mas gosto mais de estar aberta para a vida. E de pessoas que também estão. Eu quis o desconhecido, porque ele transforma o que o conforto mantém. Eu me lancei. Agora já não sei.

Já não reconheço os contornos, que são outros. Faltam pedaços e essa falta ainda dói. Dor de saudade e de possibilidades infinitas. Mas é essa ferida que desvela as outras camadas: uma nova escultura dentro da matéria-EU.

Sobrevivente, sim. Ilesa, nunca.

Eu me recuso a sair de casa e voltar a mesma.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Austrália - quarta parte: AR


(De Sydney a Bali )

Eu começaria essa história por uma imagem. Não é meu o ponto de vista, mas virou minha memória, também. Eu chegando pelo caminho de pedra, arrastando a mala entre as plantas. Ele me viu do alto, da varanda. E, ao longo dos dias, tantas vezes me descreveria esse momento dizendo ser o melhor de todos os seus meses de viagem.

Eu chegando com minha mala. Mas houve tanto antes e tanto depois. Houve Sydney, onde desembarquei para ficar, a princípio, uma semana inteira. Mas havia Bali, essa semente de ideia crescendo de forma tão monstruosa. Houve o estresse da cidade, um telefonema que me fez chorar e depois. Uma decisão completamente impulsiva, uma leviandade tão irresponsável a ponto de me fazer feliz. Uma companhia aérea, uma passagem em mãos. A vontade de sair pulando e gritando. Alegria contida, engolida, engasgada de vergonha. Eu quis berrar na Harbour Bridge, na Sydney Opera House, nas galerias e galerias. Então me cansei da cidade e voltei ao aeroporto à espera.

Foram duas noites viradas sem uma cama, dormindo em lanchonetes e aeroportos. Então cheguei. Com apenas o dinheiro do visto e um e-mail para minha mãe, indicando meu paradeiro e pedindo socorro. Os taxistas vinham me oferecer serviço e eu não sabia o que dizer. "É que normalmente as pessoas, quando viajam para outro país, levam pelo menos algum dinheiro", diria meu amigo mais tarde. Eu não. Eu tinha apenas a vontade.

Então expliquei a situação a um motorista mais prestativo. Poderíamos passar em uma agência, mas eu não tinha certeza se poderia pagá-lo. Ele disse que não perdêssemos tempo e me levou. E lá estava o dinheiro enviado pela minha santa, santa, mãe. Mais tranquila, voltei ao taxi e seguimos um nome.

Eu arrastando a mala pelo caminho de pedra. Ele me gritando da varanda. Então eu pulei e gritei toda a alegria engasgada. Se eu soubesse antes - eu diria. Tudo tem uma razão - ele respondeu tantas vezes.

Anoxia - diagnosticou minha irmã, quando expliquei a sensação que tinha, que tenho sempre. Outra amiga diagnosticara claustrofobia, o que comumente causava uma discussão. A caminho da faculdade, de manhã cedo, eu fazia questão de deixar uma frestinha da janela aberta, mesmo congelando de frio. E, quando ela dizia, eu insistia não ser claustrofóbica. Mas sou. E quase nunca tem a ver com janelas abertas, mas com o espaço que tenho para espalhar a alma. Da última vez em que me pediram amor, eu fugi de bicicleta. Como se o vento aumentasse a velocidade de entrada de ar nos pulmões. Eu dou amor ilimitado, mas não me peçam. Nunca fui boa em cumprir expectativas.

De volta a Bali, eu respirava. Ele na poltrona, eu na mureta da varanda. Nós fechávamos os olhos para sentir o ar nos pulmões. E às vezes eu os abria só para ver o seu rosto, olhos fechados, escutando o silêncio. Acho bonito ver gente em estado de graça.

Era bom estar com ele e era bom que fosse assim, não um romance, mas sintonia e amizade. A gente compartilhava esses longos silêncios. Eles eram preenchidos de um ar fresco de plantas e flores, de cantos de pássaros, de um estar no mundo da forma mais plena possível. Então voltávamos do quase transe e engatávamos longos diálogos.

Todo dia tinha uma flor. Um templo. Uma caminhada. Um mergulho na piscina. Uma única mesa no restaurante, onde podíamos nos espalhar no tatame. Um milkshake de banana e às vezes uma massagem. Ele fumando um cigarro, eu cheirando uma flor. Ele com uma lata de cerveja, eu com uma barra de chocolate. E, quando acordávamos de manhã, já havia sempre na varanda uma garrafa térmica com chá. Então passava o homenzinho e nos via sentados, amanhecendo. E trazia panquecas e frutas. Quando perdi a noção dos dias e das horas, me respondeu meu amigo: Hoje é Bali, amanhã é Bali. É esse o nosso tempo.

Muitas vezes me perguntei como seria ter feito essa viagem sozinha. Menos conforto, mais liberdade, provavelmente. Talvez fosse solitário não ter com quem compartilhar tamanha beleza. Talvez não.

Em meu penúltimo dia acordei atacada, larguei-o no quarto e saí andando sem mais explicações. Anoxia. Visitei mercados, conversei com as pessoas na rua, andei descalça na praia. Uma menina passou por mim de bicicleta, deu meia-volta e guiou meu trajeto. Ela tinha a pele morena e longas tranças. Quase tive certeza de que ela me identificara como irmã no mundo. Aconteceu comigo. Olhando aquele povo, eu podia jurar ser um deles. Indonesiana. Então voltei balinesa ao quarto. Meu amigo estava lá, tranquilo, lendo o livro que eu comprara na Austrália. Ele ficou feliz ao me ver e não pediu explicações. Almoçamos juntos e livres.

No dia seguinte acordamos cedo, ao som do despertador. Tomamos um café-da-manhã silencioso na praia. Aquele cheiro de mar. Eu o observei mais uma vez com os olhos fechados em êxtase. Ele não tinha tranças compridas, olhos puxados ou pele morena. Era um alemão que, por uma sucessão de acasos, encontrei na Austrália. Mas era, certamente, um irmão no mundo.

Nos abraçamos longamente quando meu motorista chegou. Desejamos nos encontrar novamente em vida, mas, secretamente, quase sabemos que não. Então segui o dia, um dia que seria livre e só meu, antes de ser deixada no aeroporto. Visitei templos e vulcões. Escolhi o restaurante do meu gosto. Caminhei no meu ritmo. E, quando me dei conta, estava compartilhando mentalmente as experiências com ele, pensando que ele reclamaria da comida ou que adoraria a paisagem.

E parti no Dia da Independência de Bali, cidade em festa. Uma dor e uma alegria. Sempre a mesma e sempre na mesma medida.

Eu arrastando a mala pela estradinha de pedra.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Australia - terceira parte: ÁGUA


(Cairns e a Grande Barreira de Corais)

A praia era lamacenta e a cidade nao era especialmente bonita. Mas, por algum motivo, eu caminhava nela com uma felicidade crescente, que beirava o êxtase. Talvez eu fosse uma pessoa climática, foi o que me ocorreu. Dê-me um sol de leve e uma brisa fresca que eu me torno facilmente a pessoa mais feliz do mundo, explosiva de prazer.

E as pessoas ali nao eram festa. Eram pessoas, apenas. Conversavam sobre viagens e livros e comidas. E essa convivência que flui com a simplicidade me agradava, me agrada.

Entao parti naquele barco, animada porque conheceria a Grande Barreira de Corais. O mar estava agitado e sacudia o barco até nao poder mais. Eu fui me sentindo mal e, com o enjoo, também veio uma tristeza. Debruçada sobre o mar, vomitei o café da manhã, depois o copo d'água que bebi. Naquele momento, decidi nao colocar no corpo mais um grão de comida e nem uma gota de água enquanto não estivesse em terra firme, o que cumpri ate o fim.

Lá estava eu, sentada no chão no barco, arrasada, pensando em como faria para fugir daquele lugar e me odiando por ter me metido em um passeio de dois dias, quando um só já seria o suficiente, e recordando o dramin que eu deixara na mala, no hostel. E eu me lembro de olhar para o mar, de um azul escuro agitado, e de repente me sentir pequena, muito pequena e muito frágil. E de me sentir traída por aquele azul infinito em que tantas vezes desejei me confundir. O universo subitamente me parecia hostil e eu queria escapar de alguma maneira. E eu, que sempre busquei o infinito, me vi questionando se não acabaria nunca o eterno movimento do mundo.

Ventava muito e eu me encolhia naquele barco, repleta de agasalhos que não me esquentavam. Disseram que a água era morna, entao fui fazer snorkel e achei complicado e tive medo. E eu era tão vulnerável naquele momento, se ao menos pudesse sumir, desaparecer no mar, mas não aquilo, nao me agitar, ter frio, calafrios.

Algumas pessoas que tentavam mergulhar voltavam rapidamente, dizendo se sentirem mal ou não serem capazes. Como eu seria capaz, então, eu, que nem podia mais com o movimento das coisas e que já achara dificil nadar com snorkel?

Mas então ele me pegou pela mão e, quando vi, estava imersa no silêncio do oceano. "But it's calm under the waves, in the blue of my oblivion"... esta música, que minha irmã costumava escutar na adolescência, me vinha como um mantra. Porque o silêncio do fundo do mar comportava uma vibração religiosa. Eu não tinha mais um corpo, eu não tinha frio, eu não tinha medo. E, sobretudo, eu não pensava ser possivel ver as imagens que estavam à minha frente, meu deus! Os corais, os peixes coloridos e todos aqueles seres... o que seriam? Eu havia visto fotos, videos, mas isso existia no mundo real? Uma pessoa comum pode ver isto em vida?

E de repente me ocorreu que meu problema era com a superfície. Eu gosto do mergulho e de tudo aquilo que com ele advém. Tambem me ocorreu que o oceano é esse misterio, esse vai e vem, esse leva e traz. E o melhor que eu podia fazer, mesmo em meio às perdas e ao caos da imensidão, era mergulhar, mergulhar.

Eu gosto do fundo das coisas. Eu gosto das pessoas que são pessoas, não festas, não shows. Por isso, naquela noite, vestida para sair e encontrar um grupo grande e barulhento, nao resisti quando ele, uma pessoa que gosta de livros e que acha que uma vida nao é o bastante, me convidou para compartilhar seu jantar. Era a primeira vez que cozinhava abóbora.

Em terra firme, depois de dois dias de frio, enjoo, fome e contato com o divino, eu comia um prato aconchegante, feito por mão amiga.

Um dia alguém me disse que minha onda era me aproximar e recuar. Não era. Basta essa mão amiga que me convide ao mergulho. E um oceano aberto e transparente, com peixes coloridos. E mergulhamos em músicas, em listas infinitas, em desenhos, em supermercados.

Depois disso eu seguiria para um lado e ele para outro. Então resolvemos, na última noite, preparar um outro jantar, o jantar de despedida. Compramos batata, aspargos, carne e salada. Ele cozinhou, eu comi e comi. Ele ficou feliz porque não sou dessas que comem só meio aspargo e dizem estar satisfeitas. Eu não. Eu mergulho. E celebramos o encontro e a partida, aceitando que assim é a vida, tal qual o mar. Ele traz, ele leva. Cabe a nós mergulhar.

E fiquei em paz com o eterno movimento do mundo.


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Australia - segunda parte: FOGO



(Top End & Red Centre)


Segui minha viagem sozinha em direção ao extremo norte do país. E um verão inesperado em pleno inverno australiano me pegou de surpresa. Sol ardente e clima de festa em uma cidadezinha que eu esperava encontrar perdida no meio do nada. Caminhada por galerias charmosas, piscina com maiô emprestado, cinema a céu aberto e gente, muita gente jovem de todos os cantos do mundo. E eu, que chegara com aquela sensação de estar sempre de fora, num piscar de olhos fazia parte da festa.

E em outro piscar de olhos estava acampada sob uma abóbada de estrelas infinitas no céu, com noites de fogueira que faziam trincar a pele. Dias quentes de rochas e trilhas e cachoeiras. De escalar montes para, lá no alto, encontrar uma praia de areias finas e águas frescas. E em outro piscar de olhos eu me despedia do local dançando em uma balada australiana e, mais um piscar, eu voava para o Red Centre, ao lado de um canadense que me dava dicas e que tinha as bochechas vermelhas, vermelhas.

O avião aterrissava na cidade e me confundia, pois eu não via casas, edifícios, construções, apenas terra e montanhas muito vermelhas, com arbustos de um verde-claro infinito. E então, de repente, estava diante de uma rocha incrivelmente grande e vermelha, repleta de inscrições que contam a história de um povo. Eu cheguei pensando em escalá-la, mas, quando tive a oportunidade, já estava imersa no ambiente de sacralidade daquele local. Ali residia toda a ancestralidade daquele povo que era terra. Que dela vinha e para ela voltava. E que era, sobretudo, daquela terra vermelha desértica.

Mais noites de conversa em torno da fogueira, estrelas e estrelas, todo dia madrugar para ver o sol nascer em um lugar diferente. E mais rochas e mais imersão e tudo sempre mais e mais vermelho na terra do fogo.

sábado, 30 de julho de 2011

Australia- primeira parte: TERRA


(SOUTH AUSTRALIA)


Cheguei ao aeroporto de Adelaide ainda levemente estressada, pois havia perdido o primeiro voo. Sensação de ter saído da bolha de sabão que era a Nova Zelândia, o excesso de zelo. Tudo muito limpo e organizado, as pessoas sempre atenciosas e prestativas.

Então, mal saí do avião e lá estava ela, minha irmã, me esperando. Terra firme em um lugar tão distante. E, porque havia uma semana eu não encontrava um rosto conhecido e talvez houvesse um ano que eu não encontrava aquele rosto conhecido, nós não paramos de falar. E, quando digo nós, era muito mais eu, que não me calei durante três ou sete dias. Queria contar-lhe do mundo, do meu mundo, ja que usamos lentes tão parecidas. E ela também me contava de sua vida, o que me fazia rir, pois gosto desse humor de quem não faz piadas, apenas tem uma forma única de experimentar e narrar o mundo.

- Este lugar é muito deserto - ela disse - eu contei quantas pessoas...

E eu interrompia com uma crise de riso, porque pensava que ela contara as pessoas do local.

- Não, eu contei quantas pessoas atrapalham minha vida. Cinco. É muito, pra um lugar tão pequeno. Tem a mulher da cantina, a da administração geral, o motorista do ônibus... - e, quando via que eu achava graca, continuava, séria - o motorista do ônibus me faz muito infeliz!

E eu lhe contava os acontecimentos da minha vida, até ela me interromper, dizendo:

- Nossa, você não para de falar! ... Mas tudo bem, pode falar, mas eu preciso me concentrar no transito de vez em quando.

Gostei de conhecer sua casa, a comida da cantina com a salada que ela preparava, o edredom verde mais quente e macio que existe. Gostei do pássaro com TOC que confundimos mudando os carros de lugar, as comidas típicas australianas que ela me ia apresentando. Os tim tam que eu roubava sempre na geladeira, apesar do ímã com porcos logo na porta, que dizia: "we should stop eating like this". Gostei de passear nos parques, de abraçar cangurus e coalas e de rir da minha irmã dando um cutucão na barriga do morcego. E, quando eu a repreendia, ela dizia: " Eu sei, eu não deveria fazer isso, eu sou veterinária. Mas não resisti." A nossa indignação com os cangurus: "Por que eles saltam, meu deus?" E depois, voltar para casa com alguém ao meu lado dizendo, durante o trajeto inteiro: "poim, poim, poim..."

Eu reconheço nossa linguagem onomatopéica. Eu reconheco imediatamente ela em mim, pois ser uma irmã da familia Tai é isso: ter em uma só conversa crises de riso e de choro: pela situação dos aborígines na Australia, pelo mendigo no Largo do Machado e pela confusão sem fim do mundo. E falar sobre crises que só a outra entenderá. Sobre estar em um lugar estranho. A liberdade de se ser tudo, já que são os laços sociais que nos definem. E o quanto isso nos assusta. É tão difícil ser tudo de novo.

E, sendo transportada a sua vida, conhecendo seu namorado, sendo levada a lugares belíssimos e a experimentar diversos sabores, era engracado como no meio de tudo aquilo que me era desconhecido, eu me sentia em terra tão firme.

As tais raízes.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Aotearoa




"Como este ceu é denso!" foi meu primeiro pensamento ao descer no país das nuvens. Eu as olhava, brancas e fofas, da janela do ônibus. Anos antes eu dissera a alguém que são essas as nuvens das quais gosto mais. Ele me respondeu que eram cumulus. E hoje descobri o significado de Aotearoa, o nome maori do país: longas nuvens brancas. Então eles também, os maori, sabiam.



No aeroporto me preparo para partir. Breve, breve passagem pelo país das nuvens. Algum tempo antes busquei uma delas, pequenina, lá do alto, para um menino que passou de skate. Daqui eu levaria várias, fartas, ao alcance das mãos, para as pessoas queridas que ficaram, pessoas que eu trouxe. Catá-las-ia nos lagos, nos prédios, nos céus. Seria bonito tirar nuvens brancas das malas. E dizer assim: " pra você eu trouxe a nuvenzinha que saía de um vulcão", "pra você eu trouxe esta, trespassada pelo sol". Ou pelos nomes: cumulus, nimbus, cirrus. E ir tirando nuvens como coelhos da cartola.


Hoje tive uma dor de cabeça que me fez querer parar. Sumir, talvez. Tomar sorvete. Então escolhi um cheio de berries e me sentei à rua, na tarde fria, porém ensolarada. Um sol de nuvens brancas e longas. Aotearoa.


Quero partir daqui assim, como quem lentamente vai desvanecendo com um sorvete na mão, entre as nuvens.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

B-612




E eu voei durante treze horas de um longo sono. Não fiz planos. Confesso que muito mais por preguiça do que por espírito aventureiro. Talvez porque abrir as velas me premiasse com as melhores ondas. Eu acredito nos bons ventos que virão. Eles sempre me vieram.

Caí no lugar certo com as pessoas certas. Elas tão educadas e prestativas. Fácil chegar onde se quer. Tive que abrir mão de um dos destinos, entretanto. Uma longa caminhada entre montanhas, com a recompensa de lagos verdes, um verde-esmeralda de cegar. Mas agora há chuva e neve, o trajeto fica perigoso, me disse o rapaz. A trilha é sinalizada? perguntei, na esperança de ir sozinha apesar de. E imediatamente me lembrei de meu pai, dizendo para eu não inventar de me meter sozinha nos desertos. Onde sempre acabo entrando, de uma forma ou de outra.

Então vim direto para um outro destino: os vulcões. Gosto de tudo que nao se contém. As intersecções, que ludibriam as margens. E reverbera em mim uma carta e dentro dela uma frase, que eu colocaria entre parênteses, não fossem eles, também, margens. Mas volto aos vulcões. E ao que escapa. Em que planeta estou? eu me perguntei. Gosto do que escapa.

Alguém me disse que viajar sozinha é uma ótima maneira de se encontrar. Não tenho essa pretensão. Me perco e me encontro diariamente, nao importa onde. Mas encontro pedacos onde vou. Isso também sou eu, reconheço. Quer dizer que andar na cidade pacata, com tanta cara de Estados Unidos, dói? Quer dizer. Outro pedaço. Pequenos traumas (?) para os quais não tenho explicação. Som de tv. Pôr do sol. Feijão na panela de pressão. Cidade americana. São dores específicas e sim, também sou eu.

E eu me vejo em tudo isso: nos campos ondulados, nos vulcões, nas pessoas amigáveis e no louco que disse algo que me fez chorar. No banho de lama que não tomei e me arrependi, na caminhada perigosa entre montanhas, no deserto e de repente. Um pensamento que eu acreditei depositar no Pacífico, mas que veio disfarçadamente comigo.

Aceito os pedacos.


quarta-feira, 6 de julho de 2011

Retalhos (poesia do olhar)

E fomos respondendo um ao outro com letras de músicas. O diálogo ficou longo e, quando vi, até que fez sentido. Juntei tudo num texto só, mudando apenas as pontuações:


"No balanço das ondas, eu vou: os barcos são a alegria desse lugar, toda tarde tem festa quando chegam do mar, na ilha de Lia(n) no barco de Rosa. Mas que bobagem, as rosas não falam. Ah, mas elas exalam. Devias vir para ver os meus olhos tristonhos. Seus olhos e seus olhares, milhares de tentações. Juro por Deus que a luz dos olhos meus já não pode esperar. Eu estou a lhe esperar, todo dia, toda hora, em qualquer lugar, por onde for quero ser seu par. Aonde quer que eu vá, levo você no olhar.Te ver e não te querer é improvável, é impossível. Se dizem que é impossível, eu digo "é necessário". Se dizem que estou louco, fazendo tudo ao contrário, eu digo que é preciso, eu preciso, é necessário: All you need is love, all is full of love, all around you. You stick around now it may show I don't know, I don't know. It's not hard to grow when you know that you just don't know. You dont know what I know, cause I know where we came from. It would sure be nice to be back home, where there's love and affection, get back to where you once belonged: I belong to you, you belong to me, this is our fate, I'm yours. Sou sua jura, sou sua cura pro mal do amor. Todo mundo ama um dia, todo mundo chora, um dia a gente chega e no outro vai embora. E assim chegar e partir são só dois lados da mesma viagem. Mas se ela voltar, se ela voltar que coisa linda! Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim. A gente é feito pra acabar, a gente é feito pra dizer que sim. Enquanto o amor ferir, e o pranto a dor sarar, não digo “não” nem dou o “sim”. "Sim", são três letrinhas, todas bonitinhas, fáceis de dizer, ditas por você, nesse seu sim assim, sem ter fim, pra você eu digo: sim! Se eu tivesse mais alma pra dar, eu daria. Isso pra mim é viver. Ah, se eu pudesse te buscar sorrindo e lindo fosse o dia, como um dia foi. Ah, se eu pudesse, no fim do caminho, achar nosso barquinho e levá-lo ao mar! O mar quando quebra na praia é bonito, é bonito. O sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo. E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo. Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo. Quando o segundo sol chegar, para realinhar as órbitas dos planetas, deixo toda dor pra trás, perdida num planeta abandonado no espaço. E os meus passos nunca mais serão iguais: Roda pela vida afora e põe pra fora esta alegria, canta que amanhece o dia pra se cantar. Gira, que essa gente aflita se agita e segue no seu passo. Mostra toda essa poesia do olhar."

domingo, 3 de julho de 2011

Aquarela


Foi seu pincel que deu os meus traços.

Dele eu tenho a tez morena, o queixo quadrado e às vezes, só às vezes, esse longo silêncio. Dele eu tenho esse sangue quente e vermelho, que tento abrandar com a fluidez de águas doces. Ele não. Ele vive o fogo e não foge ao incêndio. Dele eu tenho o exército que impede a invasão das não-borboletas. Tenho o solo seco na superfície, para que floresçam os profundamente enraizados. Dele eu tenho o apego à vida. Mas ele tem vida para mil planos e planos para mil vidas. E eu tenho apenas essa alegria vagabunda de existir. Isso é meu. Mas foi dele que ganhei os primeiros pássaros.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Pacto


De sempre em diante, de ontem pra sempre, fica acordado entre ambas as partes que é proibido adormecer. Que vida deve pulsar na ponta de cada dedo, que nossa luz deve expulsar alguma sombra de medo, alguma sobra em segredo. Fica decretado que é cedo. Que somos amigos de infância, eu e você. É proibido se perder no tempo dos homens. Fica acordado que não somos mortais. Fica acordado, amigo. Eu preciso de você atento, eu preciso de você comigo. Mesmo que as estradas e as distâncias e as neblinas tentem nos cegar. É necessário saber ser infinito, ser vário. É essencial buscar no alto da montanha as tramas que nos vestem. Porque é preciso ser grande, ser vasto. É porque não me basto e nunca basta ser um. É porque seu sorriso largo me abastece, o seu riso é uma prece e é nisso que acredito: a gargalhada, o soluço, o grito. É um pacto: mesmo longe, fique dentro, fique ao lado. Mundo fica mais bonito.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Singrar


Foi-se o porto e agora tudo é mar. Houve um momento de esperança desse encontro, como se houvesse o que encontrar. Você procurando tesouros em mim, barco vazio. E os meus tesouros estavam ao redor: o azul. Eu quis te levar para navegar. Você insistindo em entrar neste barco de portas trancadas, cheio de fantasmas. Navio de guerra. Navio pirata. Eu naveguei tanto para chegar até você. Mas são diversos os caminhos. E a lua controla a maré. Você veio por terra. Eu não soube ancorar. Eu não sei o peso do navio de carga. Menina lançada ao mundo, você disse. Então eu abro as velas e me lanço ao vento. A insustentável leveza carrega essa dor do ser. Que o vento saiba o que eu não sei. Eu me lancei.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Paraisópolis


Nos encontramos no caminho dos malditos. Eu subi dois degraus para alcançá-lo. Ele pediu que eu trouxesse um pedaço do céu. Eu, que não soube que azul escolher, trouxe uma nuvem. O Universo rindo de mim e eu rindo junto. Menino de skate na vila. Imensidão. Êxtase. Bandeirolas e vinho barato. Essa luz amarela é linda, mas dói de beleza. Eu doo. De doar e de doer. Nome Jonas, apelido Serafim. Pode acontecer. Eu gosto dos ossos e dos lugares estranhos. O mesmo presente burocrático. A mesma paixão por rituais. Se ele disse, fui eu quem pensei. E por que não paro de pensar?

sábado, 18 de junho de 2011

Baby é magrelinha


Conversando com um amigo sobre o que eu esperava de um relacionamento, ele me disse que eu deveria escolher entre liberdade, segurança e arrebatamento, pois eu não poderia ter os três ao mesmo tempo. Ele falou brincando, mas pensei a sério sobre o assunto. O que me é essencial e o que não é. O que me move.

***

O dia estava lindo, estava livre. Pulei da cama pensando em pedalar pela cidade. Joguei meu kit de sobrevivência na cestinha da bike: um garrafa d'água, cachecol, bolsa e um livro. Saí feliz da vida. Já na primeira rua que atravessei, ouvi o barulho de algo caindo. Era a luzinha da roda. Não faz mal, pensei. Já pedalando no aterro, outro contratempo. Desta vez quem caiu foi a cesta da bicicleta, com meus objetos voando para tudo quanto é lado. Um senhor e um rapaz pararam para me ajudar. Tive que fazer uma gambiarra com elástico de cabelo, para fixá-la de volta, e não é que funcionou? Mas já fiquei alerta e me perguntando se não seria tudo um sinal. Talvez fosse hora de voltar para casa e ficar quietinha, antes que algo mais sério acontecesse. Não quis me ligar a esse pensamento e segui em frente.

Em Botafogo, parei em um posto de gasolina para perguntar como eu seguiria para Copacabana, se havia algum caminho com ciclovia. O rapaz do posto não soube responder e ainda pediu que eu tomasse cuidado, pois mais cedo mesmo tinha morrido um ciclista logo ali. Eu tapei os ouvidos e disse que não me interessava, que não queria saber. Ele ainda apontou o local, enquanto eu dizia: "não, moço, não me conta essas coisas". Saí pedalando entristecida de morte e me perguntei mais uma vez se não seria hora de voltar. Não quis. Mas fui pedalando com essa tristezinha a mais de ciclista morto atropelado. Então fui cantando "Pra acabar", do Marcelo Jeneci, e a tristeza foi passando. E quando me concentrei no mar, de repente tudo ficou grande, grande, e a tristeza ficou pequena até sumir e se transformar em uma onda de alegria, êxtase e plenitude.

Fui até o final da pista no Leblon, subi para almoçar no Balada Mix, desci ao Arpoador e fiquei um tempo lendo meu Artaud, até um grupo barulhento parar ao meu lado. Troquei de canto, li mais um pouco, depois deitei e fiquei sentindo o sol batendo no rosto. Peguei novamente minha bicicleta, dei a volta no Leblon, voltei, parei para pegar um brownie em Copacabana e segui para casa. Cheguei livre e preenchida de vida. Arrebatada.

***

Meu amigo me disse para escolher entre segurança, liberdade e arrebatamento, pois tudo junto não pode ser. Depois de pensar sobre o que me move e o que me é essencial, optei pelos dois últimos. Estou pensando seriamente em me casar com a minha bicicleta.


domingo, 12 de junho de 2011

Oração dos namorados


Que o prazer seja maior do que a prisão.

Que se caiba na vida do outro do tamanho que se for, sem se encolher ou esconder. Que se possa ser grande. E que haja espaço para crescer.

Que as dúvidas sejam dádivas, não dívidas. Mas que se divida.

Que seja vida.

Amém.

sábado, 11 de junho de 2011

Pandora


Pensou em voltar para a cama, mas sabia que quando pegasse no sono seria hora de levantar. Então ficou ali, sentada, com uma dor de cabeça de noite maldormida, pensando no que fazer naquele entre-tempo. Nisso tocou o interfone. Casa 15? Era para ela. Um sedex. Quando olhou para a caixa, reconheceu a letra, viu o endereço no pacote e leu o medo nas entrelinhas.

Já em seu quarto, diante da caixa aberta, olhava aqueles objetos sem saber o que seriam e muito menos o que significavam. Leu a carta e compreendeu. Um presente, talvez. Uma celebração. Um gesto. Mas um gesto de quê?

Havia aquele cheiro.

E ela tinha esse bicho que lhe antecipava o mundo olfativamente e decidia, de antemão, seus afetos. Esse maldito corpo que precedia toda sua tentativa de organização. Pensou em um nome para denominar os sentimentos suscitados. Mas eram muitos e contraditórios.

Fechou a caixa e seguiu a vida.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Entre gatos


Bom é ser gato entre gatos. É ter sete vidas, porque tantas não cabem em uma. É o carinho certo, o prazer genuíno do ronronar. Bom é não ter que atender quando alguém te chamar. É se fazer de desentendido. Desentendido não. É o se dar o direito de ignorar. E aparecer quando der vontade, apenas. Desejo honesto. Verdade. É viver esse estado de concentração, de deslumbramento com o pequeno. Lindo é o barbante, o voo do inseto, a janela. É descobrir outros tempos. Caminhar em câmera lenta e saltar em um segundo. É ser o dono do mundo. É eriçar todos os pêlos e mostrar todos o dentes ao surgimento de um outro, até que três dias depois ele não seja mais outro, mas um pouco do um. Até os cheiros se confundirem. Até dividirem cama, sofá, tapete, ração. É a troca do calor. É fazer do outro quarto, sala, salão. É fazer festinhas, é preparar o terreno, é se aconchegar. Eu quero isso: ser um gato entre gatos.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Sapatos


Ela é uma dessas pessoas de extraordinária delicadeza. Hoje me escreveu um e-mail oferecendo seus sapatos. Havia sonhado que as sapatilhas que eu usava feriam meus pés.

Às vezes ferem. Às vezes o que me salva são essas pessoas que calçam meu número. Ou que me oferecem seus sapatos, mesmo que largos. Como já me aconteceu na rua com um estranho, havaianas número 43, quando as minhas arrebentaram.

O que me salva é o amor, mesmo quando escolho andar descalça.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Ouriços

Hoje você me mandou esta foto, que me fez recordar uma história que minha terapeuta costumava contar, sobre os ouriços: Eles, na noite fria, aconchegam-se para dormir. Precisam do calor um do outro. Porém não podem aproximar-se demais, ou acabam se espetando. Nós, ouriços, somos assim: constantemente medindo a distância adequada entre mim e o outro. O quanto somos capazes de agregar sem ferir.

Então eu me lembrei de uma época em que não tínhamos essa lucidez dos sensatos. Aproximamo-nos mais, muito mais do que era possível a nós, ouriços. E nossos espinhos cravaram-se um no outro. Mas eles não nos feriam, extasiados que estávamos ao nos reconhecermos como um.

Poderíamos nos manter eternamente espetados e unidos, um pelo outro, um ao outro, não fosse a lentidão com que dois corpos se movimentam juntos, não fosse o peso, não fosse a minha pressa e a ânsia de me lançar ao espaço. Não fosse a brusquidão com que separei os corpos perfurados para só então me dar conta do sangue que corria pelos poros já não tapados pelo espinho que outrora se agregara. Agora alheio.

Hoje você me manda esta foto: um ouriço. E ela me faz pensar que o medo não é das perfurações, mas da retirada dos espinhos.

sábado, 21 de maio de 2011

Chega a idade...




(nove sinais de que você envelheceu)

- Você descansa depois de comer:

Quando crianças, nós almoçamos e saímos correndo, sob o alerta dos pais: “Você acabou de comer, tem que fazer a digestão, não entre na piscina!” Pra gente essa coisa de digestão é meio mística, comer não faz diferença nenhuma no nosso organismo e na disposição para brincar, pular e correr. Pois chega um dia em que faz.

- Você sabe o que é elasticidade da pele:

Antigamente essa conversa de propaganda de cosméticos era muito distante da minha realidade. Eu só visualizava a tal da elasticidade, que era a pele normal, em contraponto à pele das pessoas bem velhinhas, aquelas todas enrugadas. Um dia olhei no espelho e me veio a luz: “Isso é elasticidade da pele!” Isso. Era isso que estava faltando.

- Você gosta de cerejas em calda e, num estágio mais avançado, de frutas cristalizadas:

Bem, essa é uma etapa em que ainda não cheguei, embora já tolere as tais cerejas. Pois bem, não conheço uma criança que goste de frutas cristalizadas, quase nenhum jovem, um ou outro adulto e muitos idosos. Quando envelhecemos, perdemos a sensibilidade do paladar e o sabor doce é um dos poucos que se sobressaem. Daí a preferência.

- A temperatura da comida faz diferença:

Lembro quando era criança e a Conceição, nossa empregada, chamava-me para almoçar. Eu queria brincar mais um pouquinho, e ela dizia: “Venha logo, que a comida vai esfriar!” Eu pensava que era melhor que esfriasse mesmo, assim não precisaria soprar para comê-la. Tempos depois comecei a fazer questão de comida quentinha. A tal da idade...

- Você descobre os órgãos do corpo:

Até certa idade, tudo o que se sente na parte traseira são coisas que acontecem nas costas. Certa vez tive dores, fui à farmácia comprar relaxante muscular para a “dor nas costas”, que ainda assim não passava. Então uma amiga me disse: “Lian, nesse lugar para onde você está apontando ficam os rins”. E descobri uma infecção. Isso quer dizer que já cheguei na idade da descoberta dos rins. Nas idades mais avançadas, as pessoas descobrem não apenas onde ficam os órgãos, mas passam a descobrir órgãos de cujas existências elas sequer desconfiavam.

- Você se desinteressa dos homens (ou mulheres) mais velhos:

Enquanto você é novinho, os parceiros da mesma idade são moleques, enquanto os mais velhos parecem bem mais maduros e interessantes. Até que chega um dia em que as pessoas da sua idade já são adultos feitos, enquanto os mais velhos do que você... bem, já estão velhos demais.

- Você descobre que não tem tanto direito de se ofender com os coroas que te dão cantadas:

Antigamente eu pensava: “Que nojo esse velho cantando uma mocinha como eu!” Até que um dia me dei conta da novidade: Eu também já não sou essa mocinha toda. É...

- Você tem uma anágua e uma bolsa de água quente:

Eu ri durante muito tempo da amiga que comprou uma anágua para usar com as saias mais transparentes: “Isso é coisa tão antiga, de gente velha!” Paguei língua. Comprei uma saia linda, toda rendada e... transparente. O jeito foi comprar uma anágua também. Quanto à bolsa de água quente... acordei com um torcicolo que não me permitia mexer o pescoço. Fui ao acupunturista e, ao final da sessão, ele me aconselhou a comprar uma bolsa para fazer compressas. Saí da farmácia me sentindo dez anos mais velha.

- Você descobre que já não conhece nenhuma das músicas da moda:

Pior, além de torcer o nariz para as bandinhas novas, ainda acha que as do seu tempo são bem melhores. Bem, se o “seu tempo” já existe, definitivamente você está velho!