sexta-feira, 23 de maio de 2014

Divagações de um aeroporto



Sentada em um aeroporto, esperando um avião que me levaria para longe daquilo que é o nosso espaço. Para longe da vila onde nos encontramos, as ruas onde andamos de mãos dadas, a cama que compartilhamos, entre chás e granolas e açaís. E de repente, nesse espaço impessoal, embora cheio de pessoas com suas malas e histórias, me vem sua imagem. Eu vejo você dormindo na cama, como via tantas vezes enquanto você dormia. E eu me espantava e me alegrava com sua presença. E você nunca saberá o quanto torci para que os mosquitos chatos me atacassem durante a noite, só para te poupar das picadas. E depois eu me lembro de outras pessoas, aquelas que eu não conhecia e que estavam em um ambiente – eu nunca freqüentei esse tipo de ambiente – mas imagino que também tão frio e impessoal quanto esse aeroporto. E também tão cheio de pessoas, pessoas quentes, com suas histórias. Sei que a notícia nos sufocou por muito tempo: uma boate que pegou fogo no Rio Grande do Sul. E que os celulares dos jovens ficavam tocando, com ligações de mães desesperadas pelos filhos que não voltariam pra casa. E, disso me lembro bem, disseram que os corpos eram encontrados unidos, abraçados uns aos outros, como estão abraçados tantos corpos, em tantos escombros, em tantos acidentes em todas as épocas e lugares. E me vem novamente você. E depois me vem o mundo que desaba. Eu nunca vi tanto medo por aí. E nunca vi tão à solta e despudoradamente os discursos de ódio. Ao mesmo tempo, as lutas honestas e a busca por um amor livre e sem rédeas. E os questionamentos. E os atropelamentos. E as máscaras que caem. Eu vejo um tempo de mudanças pela frente. Eu vejo desabarem, uma por uma, as peças do dominó. E quem sou eu para lutar contra, quando o universo se revolve e se revolta? Então eu vejo que a gente se destruirá até que todas as estruturas frágeis – as estruturas falsas – caiam por terra. Eu vejo tudo. Não sem susto e não sem dor.

Mas vejo, em meio aos escombros, eu e você abraçados.


Quando tudo que é falso ruir, restará o Amor.


sexta-feira, 9 de maio de 2014

Um poeta



Encontrei Roberto em frente ao metrô General Osório, tentando entregar cópias de poesias próprias, em troca de algum dinheiro. Pele negra, barba branca, boné com a bandeira do Brasil.

Dei uma nota de dois reais e, antes que eu me desse conta, ele contava sobre sua vida e eu escutava, curiosa que sou. 

Ele morara no Bairro da Liberdade, em São Paulo, durante vários anos. Conhecera muitos chineses e japoneses. Fora professor de karatê. Depois veio viver no Rio, passou a trabalhar para o tráfico, foi preso. Agora ele é morador de rua e tenta recomeçar a vida. Seu ofício: escrever poesia. 

- Eu vou me casar com uma japonesa! - ele me contou. Por um instante me perguntei se ele não estaria me cantando, mas não. Ele prosseguiu com a história:

- Eu sou um morador de rua, então ninguém olha pra mim. Um dia essa japonesa me olhou. É uma senhora, porque eu não tenho idade pra menina, né? Ela me olhou... a gente sabe quando alguém nos olha paquerando. Aí eu fui atrás dela. Mas descobri que ela tinha um marido. Não dava. Ela é dona de uma pastelaria, ali, na rua X, em Copacabana. Eu ia, comia um pastel, ficava sentado lá, a gente trocava olhares. Mas ela tinha que pedir o divórcio, senão não ia dar, né? Mas olha o que aconteceu: no outro dia o marido dela morreu. Não sei se alguém contou sobre nós dois, se ela pediu o divórcio, porque ele morreu do coração. Aí eu fui lá, ela estava chorando. Eu chorei também. Mas não acontece nada! Tem que acontecer.

Eu o escutava quase calada, enxugando a chuva de saliva que ele cuspia sobre meu rosto. E ele continuava a contar, empolgado com a atenção que encontrara:

- Porque ninguém me olha, então, se ela me olhou com amor, eu tenho que beijar os pés dela. Posso fazer tudo, limpar o banheiro da pastelaria dela, varrer o chão. Ela é uma empresária, eu não tenho nada. Ela é muito mais merecedora do que eu. Então eu quero casar com ela e ajudar no que for preciso. Eu vou morrer antes dela, vou ser o segundo marido que ela vai enterrar.

- Como você sabe disso?

- Eu tenho câncer na cabeça, olha. - tirou o boné e me mostrou o calo na parte de cima da testa. - Isso é câncer no crânio, não é no cérebro, é no osso.

- Mas você não passa mal por causa disso?

- Todos os dias. Eu sinto muita dor.

- E se resolve com cirurgia?

- Eu já peguei uma guia do INCA, tem uma fila... Mas joguei a guia fora, fiquei com medo. Mas sabe de uma coisa? Eu tive uma visão, muitos anos atrás. E me vi casado, morando em um apartamento. Foi Deus que me contou, é uma visão de Deus isso. Então, se até hoje eu não fui casado e moro na rua, quer dizer que eu não vou morrer tão cedo. Antes, vou viver o que está prometido, Deus não mente. Olha que ironia, convivi com tantos japoneses há mais de trinta anos e vou me casar com uma japonesa agora. 

Antes de me despedir, aconselho-o a continuar frequentando a pastelaria:

- mas tenha calma, dê o tempo dela.

Ele agradece e pergunta que poesia eu quero levar.

Poesia, meu caro. Eu só quero poesia.