quinta-feira, 27 de junho de 2013
As cidades e as nuvens
Diziam que haveria uma Super Lua. E eu fui passar a noite na Pedra da Gávea para encontrá-la. Luz, naqueles dias, era coisa escassa, e cada um procurava-a como podia. Os tempos andam nebulosos. O céu também, com suas nuvens negras. A noite foi fria e um pouco chuvosa. Lua não houve, a não ser por um segundo, antes de voltar a desaparecer na escuridão. E de repente era manhã de novo, sem que pudéssemos ver o Sol nascer.
Foram assim os últimos dias. A gente escala montanhas em busca de um pouquinho de luz e encontra mais névoa. Então a gente se perde nas trilhas, por indefinição dos caminhos. "Você não tem medo dos bichos da floresta?", me perguntou uma amiga. Eu não. Eles é que têm medo de nós.
A selvageria da cidade.
Mas é que no meio da selva também é possível a delicadeza. Por isso fui a São Paulo, encontrá-la, mesmo que rapidamente. Era a qualificação do doutorado da minha irmã de alma, a Júlia. Passamos metade do dia caminhando, então começou a chover e nos escondemos em um café. A gente falava em um outro mundo, como a gente sempre fala. Eu questiono, e Júlia, sem perceber, responde em versos.
Digo-lhe que não acredito em mudanças que não partam do Amor, o grande. E que não acredito em iluminação pessoal que não chegue ao social. Que não acredito em iluminação vertical. E me volta à cabeça o comentário de um amigo, tentando me agradar, quando eu discutia questões sociais: "Não perca seu precioso tempo com isso. Ilumine-se!" E eu respondia mentalmente: "Iluminar-me como? Praticando minha Yoga, alheia ao mundo? E, se assim for, meu tempo é precioso por quê?" É que, a meu ver, iluminação é, antes de tudo, Amor: comunhão. Oposto de Ego, que nos separa do todo que somos. Por isso acredito que, no caminho da iluminação pessoal, é impossível que não nos deparemos com o social. Porque, quando ampliamos em Amor, não mais podemos dizer que o problema do outro nada tem a ver com o meu.
Isso tudo eu compartilhava com a Júlia, explicando-lhe, porém, que não acreditava em revoluções a partir de teorias, por certas que elas fossem. Só acredito nas transformações efetuadas a partir da experiência do Amor. E Júlia me contava sobre Feuerbach, sobre a semelhança entre nossos pensamentos. E acrescentava, explicando-me que esse tipo de experiência só é possível quando se tem condições mínimas. Quando se tem o que comer. Quando se tem tempo. O tempo da experiência e do silêncio. Por isso a importância das pequenas medidas, como redução da jornada de trabalho. Porque uma coisa não precede a outra. O Amor realiza as mudanças, enquanto as mudanças realizam o Amor. Júlia me fala em transformação nessa linguagem que eu entendo, pois disso ela é feita.
Júlia me dá esperança, mas no dia seguinte tenho um choque de realidade. Alguns choques, na verdade. Entre eles, fico sabendo do que se passa no Rio: o número de mortos aumentando na Favela da Maré, em um confronto com a polícia. Não vejo mobilização significativa da classe média que tem ido às ruas nos últimos dias. Vida na favela vale menos? Engulo em seco. Então de que serve tudo isso? Pra mim, se não for por todos, as nossas lutas perdem o sentido. Saio em dilúvio. Chove forte em São Paulo, e caminho molhada pelas ruas. Paro em um sinal. Um moço pergunta se não quero entrar embaixo de seu guarda-chuva. Agradeço e recuso, explicando que já estou molhada mesmo. Atrás de mim, aparece uma senhora que, sem perguntar, me abriga com seu guarda-chuva. Sorrio. O sinal abre e saio agradecendo aos dois. Confirmo: na selva é possível, sim, a delicadeza.
E penso em como eu queria um mundo com mais Virgínias, Júlias, Leilanes. Descubro mais: Marílias. E mais: Jadires. Depois penso que, entre todos, era o Profeta Gentileza quem mais tinha razão.
Pego um ônibus e volto ao Rio de Janeiro. Logo que desço na rodoviária, um policial me aborda, pedindo para revistar minha mala. Remexe tudo, faz perguntas e acaba me liberando.
Saio aliviada, por ele não ter encontrado as esperanças - tão pequenas - no bolso do meu vestido.
sexta-feira, 21 de junho de 2013
Relato de guerra
( relato originalmente postado em rede social em 21/06/13)
Depois de dois dias grudada no computador, lendo e debatendo muito sobre nossos caminhos, ontem acordei buscando movimento. Computador desligado. Era hora de me alimentar de outras energias. Fui à papelaria comprar cartolina e, chegando em casa, espalhei as tintas e pincéis no chão. Isso por si só é alegria. Fiquei pensando no que escrever no cartaz. Pensava em frases das canções do Belchior, que são lindas, atuais e me acessam muito diretamente. Palavras de amor, sentido último e primeiro. Escrevi qualquer coisa assim, frente e verso, mas logo quis comprar outra cartolina. Senti necessidade de ser pontual, para deixar claro qual é minha luta. Afinal, a favor do amor todos somos. Pelo menos em teoria.
Saí de casa com o rosto pintado de índia: outro posicionamento estampado na cara. Quis clareza, desta vez, em meio a esse campo obscuro das lutas. Peguei o metrô com três amigos, que estavam vibrantes por participarem de uma manifestação. Desabafei que não estava na mesma sintonia. Ia. Mas com um frio no peito. Tinha medo. Uma das amigas, sorrindo, disse "eu não". Repliquei que respirara gás - muito gás - no domingo. É. Agora já conheço o medo. Vinagre na mochila, por garantia. Pés no chão. Um deles ainda machucado da manifestação anterior, mas insisti nos chinelos.
Cheguei à Presidente Vargas levantando meu cartaz. De um lado, a obviedade de que o custo do "não-aumento" das passagens tem que ser retirado do lucro das empresas de ônibus. Do outro, a frase "Faça amor, não faça agronegócio", sugestão da minha amiga Júlia. Mal chegamos, me separei do grupo que saiu de casa comigo. Minha energia era outra. E eu me sentia só. Saí andando, cartaz no alto, para que o máximo de pessoas lesse meu recado. Senti que, naquele momento, aquilo valia mais do que gritar os uníssonos.
Assim foi por muito tempo. Um exercício de me posicionar e observar. Depois fui seguindo o fluxo da multidão, andando em direção à Prefeitura. Então a violência. Bombas de gás lacrimogêneo, vinagre e tudo isso que, infelizmente, deixou de ser novidade na minha realidade, embora nunca o fosse, na realidade de tantos outros. Então juntei minha voz às outras para chamar a polícia de covarde e cantar a música dos Titãs. Fora isso, levantava a voz para gritar que as pessoas não corressem, para que elas não se apavorassem, para que não nos pisoteássemos.
Então apareceu um grupo, rosto coberto e aparência de periferia. Quebravam tudo, com chutes, pedras e bombas. Eu só tinha vontade de pedir que não destruíssem o pequeno comércio. O pequeno. A multidão gritava "sem violência", chamando-os de vândalos e bandidos. E eu só me perguntava quem éramos nós para dizer que não quebrassem a cidade, que nunca foi deles. A violência policial, que agora se voltou também a nós, essa sim sempre lhes pertenceu. E fiquei muito triste e também temerosa. Não era um espetáculo bonito. Mas eram os frutos do que sempre plantamos, que, de súbito, se tornavam visíveis, ali, quiséssemos ou não. Uma aula de história que se nos apresentava. Pena que muitos não puderam enxergá-la. "O que a polícia tem usado contra a população são armas de guerra, para serem usadas nas favelas, não na cidade" - me vinha esse texto à cabeça (que agora reproduzi em minhas palavras), que li recentemente e nunca engoli. Então, naquele momento, me senti extremamente confusa. Se, por um lado não os apoiava, quem era eu, ou quem éramos nós, para julgá-los a partir dos critérios de uma sociedade que nunca os enxergou como iguais?
Seguimos. Entramos na Rio Branco. De repente, polícia e "bandidos". Todos soltavam bombas. Os "bandidos" soltavam bombas nas coisas, embora estilhaços tenham alcançado alguns manifestantes. Os policiais atiravam bombas de gás, não para atingir as coisas, mas as pessoas. E a classe média corria, apavorada, cercada por todos os lados. Após pedir várias vezes que não corressem, acabei correndo também. E depois de tentar entrar em várias ruas e ser impedida, voltei pela Rio Branco, cruzei a nuvem de gás na Presidente Vargas e não sabia o que fazer, quando vi um grupo de manifestantes parado em uma esquina. Perguntei aonde eles iam, pois não queria seguir sozinha. Eles disseram que eu me juntasse a eles. Paramos na porta de um hotel, São Francisco, se não me engano. Eles tentavam se comunicar pelo celular, para descobrir se havia por onde sair. Não havia. Pedi ao gerente do hotel que nos deixasse entrar, e a resposta foi negativa. A polícia passava em seus tanques, apontando metralhadoras. Quando jogaram uma bomba de gás bem na nossa frente, o gerente abriu a porta e pediu que entrássemos com calma, um a um, e ficássemos na recepção.
Ali ficamos um tempo. Alice, Leo, Nini e Olívia, o grupo que me protegeu. Sentados no sofá do hotel ainda desolados, diante do sem-sentido que se escancarara aos nossos olhos. Mais tarde o gerente disse que mandara o segurança à esquina e que a rua já estava mais tranquila, pedindo que nos retirássemos. Agradecemos e saímos. Após um tempo conseguimos um ônibus para o Méier. Só queríamos sair dali. Lá, pegamos um taxi para a Tijuca, onde uma das garotas morava, e eu segui nele para casa, dando uma volta grande, já que ouvíramos no rádio que havia confusão na Lapa, e o túnel Santa Bárbara estava fechado também.
Entrei em casa e, para meu alívio, os amigos que haviam saído junto comigo já estavam todos lá. Tentei entrar em contato com a Márcia, amiga que desencontrei. Temi por todos. Os que estavam na manifestação. Mas também por todos nós.
A manifestação de domingo me inaugurou no medo. Mas era tudo mais claro. A de ontem me apavorou. Sim, pela polícia. Mas também por nós, essa massa cuja heterogeneidade a princípio parecia positiva, mas que se mostrava cada vez mais autoritária na exigência ultra ideológica de apagar todas as ideologias. Depois soube dos acontecimentos de São Paulo, o que reforçou minha percepção. E meu medo.
Virei a noite acordada, tentando encontrar algum sentido no que não tem. Lembrei de Walter Benjamin dizendo sobre a incapacidade de os soldados narrarem suas experiências de guerra, simplesmente porque era impossível significar suas experiências. Elas nascem do absurdo. É claro que o que vivi foi em uma escala absolutamente menor. E ainda assim foi absurdo. Fiquei pensando nos discursos tão repetidos nas manifestações, sobre impeachment da presidente. Li muito. Fiquei juntando os cacos. Tive medo de estar dando volume a uma manifestação que começou bonita a partir de um movimento político (não se enganem, tudo é político, inclusive sua negação) e que ganhou uma cara que não é minha. Que é o meu oposto. E penso que as pessoas não percebem o quanto essa manifestação que pede desenfreadamente a saída da presidente, atribuindo a ela responsabilidades que nem são de sua competência, é perigosa. Que dá abertura a golpes. Militares, inclusive. E que isso não é improvável, porque uma parte muito grande dessa massa que vai às ruas é conservadoríssima. Estamos em um momento da história que parece se repetir. Algo que não vivemos, mas nossos pais sim.
É preciso cuidado. O momento é delicado.
E, assim, me retiro das manifestações.
PS: E depois desse relato longuíssimo esqueci um detalhe importante: ontem de madrugada, desabafando com minha amiga Joyce, ela me falou que mora muito mais perto dos morros do que eu. Conhece as pessoas de lá. E que esses que quebraram tudo são DIFERENTES. Fisicamente diferentes, ela disse. Opa. Tem uma peça aí que se encaixa com uma desconfiança nossa.
Por um mundo descalço
(relato originalmente postado em rede social em 16/06/13)
Eu só sei que, em um momento, cantávamos o hino nacional e gritávamos palavras de ordem. No outro, corríamos das bombas de gás. Eu caí no chão, duas pessoas pararam pra me ajudar. Tratei de catar meus chinelos caídos e corri. Nos encolhemos em uma esquina, atrás de um carro. Todos tossiam, choravam, cuspiam. Pensei que fosse parar de respirar. Uma menina tirou um vidrinho de vinagre, passei no rosto e fiquei melhor. Subi a rampa do metrô e fiquei meio incrédula olhando os policiais. Eu só pensava em chegar bem perto e perguntar se eles conseguiam dormir. Se não tinham vergonha. A gente chorava pelo gás, mas muito mais de tristeza e indignação. Houve um momento em que eu e uma menina nos olhamos, de repente nuas e iguais. Nos abraçamos e ficamos assim um tempo. Depois vi que meu dedão estava inchado e sangrava. Era só o dedão, mas doía e atrapalhava a pisada. Me vi andando como uma velhinha e percebi como, sim, envelheci nessa tarde. "Chinelos podem ser bons para trilhas, mas não servem para manifestações", pensei. E me lembrei de quando, após subir o Pico da Bandeira, fui subir o do Cristal. Tirei a bota e fui descalça, pois meus pés dão segurança na escalada. "Não machuca?", várias pessoas me perguntavam. Machuca. Tenho que olhar por onde piso, evitar os espinhos e os cascalhos. E quando, na volta, recuperei as botas escondidas na moita, me dei conta de que podia pisar em tudo sem tomar cuidado. E que assim acabava pisando nos galhinhos e plantinhas. Pensei que, calçada, sou um monstro. E me dei conta: "Botas são tanques de guerra". E assim é o Poder. A gente pisa onde quer, sem olhar, e não sente nada.
Por um mundo descalço.
Eu só sei que, em um momento, cantávamos o hino nacional e gritávamos palavras de ordem. No outro, corríamos das bombas de gás. Eu caí no chão, duas pessoas pararam pra me ajudar. Tratei de catar meus chinelos caídos e corri. Nos encolhemos em uma esquina, atrás de um carro. Todos tossiam, choravam, cuspiam. Pensei que fosse parar de respirar. Uma menina tirou um vidrinho de vinagre, passei no rosto e fiquei melhor. Subi a rampa do metrô e fiquei meio incrédula olhando os policiais. Eu só pensava em chegar bem perto e perguntar se eles conseguiam dormir. Se não tinham vergonha. A gente chorava pelo gás, mas muito mais de tristeza e indignação. Houve um momento em que eu e uma menina nos olhamos, de repente nuas e iguais. Nos abraçamos e ficamos assim um tempo. Depois vi que meu dedão estava inchado e sangrava. Era só o dedão, mas doía e atrapalhava a pisada. Me vi andando como uma velhinha e percebi como, sim, envelheci nessa tarde. "Chinelos podem ser bons para trilhas, mas não servem para manifestações", pensei. E me lembrei de quando, após subir o Pico da Bandeira, fui subir o do Cristal. Tirei a bota e fui descalça, pois meus pés dão segurança na escalada. "Não machuca?", várias pessoas me perguntavam. Machuca. Tenho que olhar por onde piso, evitar os espinhos e os cascalhos. E quando, na volta, recuperei as botas escondidas na moita, me dei conta de que podia pisar em tudo sem tomar cuidado. E que assim acabava pisando nos galhinhos e plantinhas. Pensei que, calçada, sou um monstro. E me dei conta: "Botas são tanques de guerra". E assim é o Poder. A gente pisa onde quer, sem olhar, e não sente nada.
Por um mundo descalço.
quinta-feira, 6 de junho de 2013
Tererê
Odeio salão de beleza. Odeio. Fazer cabelo, fazer unha e essas coisas todas.
Gosto de pentear meu cabelo com os dedos mesmo. Não tenho pente, nem escova, nem secador e nenhuma dessas parafernálias em casa.
Gosto de mãos limpas. Acho bonito. Unha com cor de unha. Coisa minha.
Mas o motivo principal pelo qual odeio salões é que é tudo tão demorado. Daí a gente passa a tarde lá, esperando. A mulherada conversa sobre tudo. E eu me sinto sempre menos mulher. Pelo menos desse tipo de mulher de classe média que anda com cabelo e unhas arrumados. Meus pés são ásperos de andar no mato descalça. E eu não gosto dessa demora sentada, me sinto um E.T., que não sabe interagir, não sabe conversar sobre a novela, o namorado e as roupas. Não sabe folhear Revista Caras, nem Capricho, nem Marie Claire, sem se sentir meio tonta, meio ansiosa pelas exigências do consumo, meio feia diante das modelos lindas.
Odeio salão de beleza. Odeio.
Mas adoro fazer tererê. Na areia, no calçadão, em alguma cidadezinha perdida por aí.
Acho bonito, também. Mas o motivo principal pelo qual adoro fazer tererê é que demora.
Eu gosto dessa demora sentada, me sinto humana.
Aproveito o tempo para papear. Às vezes passa alguém e gosta, senta ao nosso lado no chão, entra na conversa. Eu pergunto de tudo. Gosto de saber da vida das pessoas.
"A gente passa por muita dificuldade, com polícia principalmente. As pessoas já têm preconceito contra preto. Hippie e preto, então, fodeu." - alguém me conta. De vez em sempre faço tererê com algum dos irmãos latino-americanos: um boliviano, um colombiano, uma argentina. Um deles me contava sobre a violência de seu país, sobre os tantos amigos e parentes perdidos. Eu sempre tento reter, mas confesso que nem sempre consigo entender tudo o que eles dizem.
Certa vez fiquei conversando com um hippie que estava começando a se estabilizar e tinha arranjado uma casinha no morro: "Ainda quero que você conheça a minha casa. Quem sabe um dia a gente acabe se casando." Quem sabe. A gente não sabe de nada, mas eu fico tentando entender.
"Meu tererê é diferente, é indígena." - me explicou um índio, trançando meu cabelo com linhas em estilo macramê. Sinto não saber de que povo ele era. Ele repetiu duas vezes, mas eu, diante da palavra desconhecida, perdi no ar a informação. "Nós não existimos mais como povo, pois nossa área foi destruída." - contou. Perguntei de que estado era a família dele. "Da Amazônia. Na verdade, da Amazônia boliviana, mas pra gente não existe essa diferença, Amazônia é uma coisa só".
"Quer uma miçanga na ponta?" Quero. Uma conchinha também.
De repente está pronto meu tererê.
E vou embora mais mulher.
quarta-feira, 5 de junho de 2013
A vila
Moro em uma simpática vila de casinhas coloridas e antigas. Às vezes brinco que pretendo desocupá-la, para ocupá-la só com amigos. Ali formaríamos nossa comunidade, brincaríamos e comeríamos juntos, na rua. Poderíamos pintar o asfalto e encher as calçadas de flores, os postes de bandeirolas. Todo início de ano dizemos que, ao final dos próximos doze meses, nossa meta é de ocupação de quatro casas. Mas até hoje só "temos" mesmo uma, onde moro com mais três amigos.
Mas a verdade é que a vizinhança é, de modo geral, bem simpática. A maioria das casas é composta por famílias que vivem aqui há gerações. No fim da tarde, tem-se a paz de crianças correndo com bolas, bicicletas e velocípedes. Às vezes senhoras nas portas esperando a banda passar. E ela às vezes passa. Em uma noite de poesia e beleza largamos o sarau em casa para fazer serenatas na vila. Havia um violino, um violão, algumas vozes. Andamos de janela em janela, cantando. Desde então alguns vizinhos me perguntam, de vez em quando, sobre a próxima serenata.
Pois há algumas semanas minha irmã veio me visitar, junto com seu namorado. Eles vieram de carro, pois chegavam de Búzios, onde haviam passado alguns dias. Poucas casas da vila têm garagem, o que não tem muita importância, já que todos estacionam nas calçadas em frente às casas. Na minha acontece de ter, mas é ocupada pelas bicicletas, nosso meio de transporte preferido. Muitas vezes um ou outro vizinho estaciona na calçada de nossa casa. Era esse o caso no dia. Por isso minha irmã estacionou na calçada da casa em frente. Os donos saíram para dizer que não estacionassem lá, pois a calçada era deles. Complementaram, dirigindo-se a mim: "Você também pode reclamar quando estacionam em frente à sua casa. A calçada é sua". Limitei-me a dizer que era a primeira vez que tínhamos esse tipo de problema e que isso não me interessava.
A verdade é que não vejo sentido em cada qual resguardar a "sua" calçada. E em seguir essa regra. E em ampliá-la. Por mim, que se misturem os carros e que haja o mínimo deles. Que se misturem as pessoas nas casas. As palavras. A vida em comum.
Que, pelo menos em uma pequena vila de casinhas antigas e coloridas, todos sejam sempre bem-vindos e convidados a entrar.
E que isso seja regra. E que se amplie. No bairro... Na cidade... Até que se eliminem as fronteiras.
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