quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Flores ao mar


Vem fevereiro. Um susto. Um ciclo.

É em fevereiro que o ano começa. E retornam os outros começos, como se aqui, hoje, espalhados pelos chão da sala.

Dia 1 de fevereiro do ano passado. Pedra da Gávea. Cachoeira. Lembro de falar para minha amiga, companheira de subidas, que daí em diante tudo que estava travado passaria a fluir. Eu podia sentir. Tomamos açaí e jogamos na loteria pela primeira vez. Nossos números não foram sorteados, mas ganhamos, como ganhamos quase sempre a loteria dos verdadeiros tesouros. Depois saí a andar na praia porque não podia voltar para casa com um sol daqueles amarelando tudo.

Dia 2: Yemanjá. Eu no banco de trás de um carro, junto com duas amigas, seguindo para Búzios. Eu apaixonada pelo mar, sonhando banhos salgados e me perguntando sempre, como sempre me pergunto, como seria nadar até não voltar. Elas voltaram à vida dois dias depois. Eu fiquei dez. No mar de Búzios, descobrindo praias desertas, os cabelos cada vez mais claros, a pele cada vez mais escura. Muitas caminhadas na areia para abrir vazios necessários às verdades. Água para dar fluidez. Açaí com paçoca para energia. As respostas aparecendo do mais simples.

Dia após dia após dia. Fevereiro fluiu em sol, em mar, em amarelos com vermelho. E teve Carnaval, que trouxe, entre multidões, algumas das pessoas mais bonitas na minha vida. Um deles vinha da Grécia, entrou de mochila em minha casa, dormiu na sala por dezesseis dias e partiu só em parte. Na primeira noite, sentamos no sofá, conversamos durante horas e postulamos as leis da vida: "Você é livre. Não mate. Não morra. Não faça sofrer. Mas sofra o que for preciso."

Não matar geralmente é fácil. Não morrer, até que aconteça. Sofrer, aceitando que a dor entre e saia, como água. Não fazer sofrer. Como? Procuro até hoje a resposta, mas só encontro a intenção. Então, em um ato de humildade, aceito ferir. Porque não tenho controle sobre a vida, minha e dos outros. E novamente tenho que encarar o vazio. Aceitá-lo. Preencher-me dele. Eximo-me da culpa e sou perdoada.

Em uma conversa, uma amiga citou Domingos de Oliveira. Não lembro as palavras exatas, mas algo do tipo: "Depois que se nasce, tudo são perdas." É o que comecei a aprender já faz algum tempo. Mas é que há bem menos tempo também comecei a aprender sobre os ganhos das perdas, os vazios preenchidos, as partes que ficam em totalidade mesmo partindo.

Em fevereiro passado, encontrei as melhores almas fantasiadas de Carnaval. Neste fevereiro me retiro. São dois movimentos de uma mesma onda. O Dragão. Agora a Serpente.

Entro.

E ainda flui.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Transpantaneira


Era o último dia do ano de 2012. Seguíamos em um jipe pela estrada transpantaneira. Por nós passavam cutias, tucanos, macacos. De vez em quando descíamos do carro e nos aproximávamos de alguma lagoa, repleta de jacarés e capivaras. Quando tínhamos sorte, uma ariranha. Nada de onça aquele dia. Vida é assim, aparece quando quer.

Era o fim de um ciclo. E era passagem do tempo que se materializava em estrada. O mundo acabara e pensava-se que não. E porque seguíamos no balanço lento pelo caminho de terra. Porque o horizonte era silêncio e contemplação. Por tudo isso e porque a vida passa, mas só quando quer. Por isso essa imagem de repente na minha cabeça. As mortes dos filmes são assim. A pessoa caminha por um corredor de pessoas queridas, acenando e sorrindo. Todas aquelas que já foram especiais na vida. Cada uma em sua melhor fase. O velho doente, quando era novo. A tia louca, quando era lúcida. A pessoa com quem se brigou e perdeu de vista, quando era próxima e cara. Elas sorriem de olhos quase lacrimejantes. Dá nó na garganta, a beleza.

Sei que percorrer aquela estrada em pleno Pantanal na última tarde do ano era quase como morrer. Dessa morte que é triste de bonita. De constatação de amor e transcendência. Na brevidade das coisas. Eu via essa imagem: o corredor de pessoas. Quem são elas, essas pessoas que me acenam e sorriem? Quantas dessas aparentam não mais caber na vida? Na praticidade dos momentos. Mas que, sem que se perceba, moram na eternidade dela. A vida que não se divide em parcelas de tempo.

Eu vi me sorrirem todos meus amores, antes que se transformassem em mágoa ou esquecimento. Eu vi me acenarem os meus amigos queridos, quando explodíamos de empatia e afeto. Eu vi os parentes todos me vendo ir, quando ninguém era só. E se reuniam em banquetes do tempo em que não se morria. E os bichos, todos eles me recebiam naquele corredor. Toquinho corria livre e me latia. Tamanduinha tomava leite na tigela, com o filhote que ela não teve grudado nas costas. Os gatos ronronavam. E eu seguia, seguia aquela estrada em meio ao Pantanal.

Eu morri no último dia do ano de 2012.

Pra renascer sabendo que amor sempre vive.


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Lição


Eu estudava em uma escola chamada Chapeuzinho Vermelho. Lembro-me bem de seus tijolinhos aparentes, das letras de madeira nas paredes e da piscininha. Ficava encostada ao Caseiro, com seus pães e biscoitos de queijo, broas e petas. Era essa nossa cantina. Meu pai nos levava para a escola e íamos lendo tudo pelo caminho: cen-tro-po-pu-lar-de-a-bas-te-ci-men-to-e-la-zer. Parecia-me enorme a escola, fico imaginando como seria revê-la hoje, se ela ainda existisse.

Eu devia ter uns cinco anos de idade, estava encostada em uma de suas paredes de tijolinhos, no pátio. Veio-me esse menininho do maternal, segurou meu braço. Um infinitésimo de segundo e nós nos olhando. Ele não falou palavra, mas me indagou com o olhar. Eu não sabia o que ele perguntava, mas ele segurava meu braço, então assenti com a cabeça. Para onde ele me levaria? Eu não sabia. E assenti. Então ele me mordeu. Isso. De certa forma, eu havia consentido. Doía. E meu pasmo era maior que a dor. Comecei a chorar. Ele, assustado comigo, chorou também. Vieram as professoras acudir. Uma me consolava, outra carregou-o pra longe, consolando-o também.

Foi minha primeira dor de amor.

Às vezes alguém ainda me segura pelo braço e me indaga sem palavras. Eu tenho sempre aquele susto primeiro. Às vezes pergunto: O quê? Paralisada de perplexidade, diante da resposta que não tenho. É que nunca se sabe se esse alguém te levará para bosques floridos ou para becos escuros. Ou se ele te morderá o braço. Então tantas vezes me afasto, recuo, fujo como se corresse pelos pátios da escola, como fiz tantas vezes, ao encontrar novamente o "menino que morde", como passei a chamá-lo.

Outras vezes, obediente e pura, apenas assinto com a cabeça. Eu nunca sei o que ele me pergunta, mas aceno um "sim" e vou.

Às vezes são doces as mordidas.