Joninhas fotografado por Pietro Feliciano |
Tudo que eu sabia, a vida veio imensa e engoliu. Hoje só sei que a vida engole. Qual baleia. Grande, ela, nesse mar. Tudo que eu sabia eu não sei mais.
Às vezes fico olhando pro Jonas, espantando-me com sua vidinha de gato. Jonas sendo engolido pela baleia. Ele também.
Eu o adotei em maio do ano passado, ele tinha então aproximadamente dois meses de idade. Fora resgatado, junto com seus irmãos, por uma menina, dessas que dá gosto saber que existe. Ela, que eu não conhecia, compartilhou foto dos gatinhos, que outra pessoa compartilhou e, na rede, chegou a mim. Pegamos o Jonas porque queríamos uma companhia para o Serafim, o gato cinza de olhos amarelos que tínhamos em casa, e que era sempre tão só.
Jonas chegou assustado, pequenino. Escondia-se sob a pia, o sofá, a máquina de lavar. Eu lhe dei colo e carinho, para que ele encontrasse aconchego. Nas primeiras noites, montei acampamento na sala, para dormir com ele e amenizar o desamparo da casa estranha.
Serafim não o recebeu bem. Rodeava-o hostilmente. Ameaçava atacá-lo. Quando dormíamos juntos, eu e Jonas, o outro se aproximava encolerizado, no meio da madrugada. Ficava ao redor, emitindo sons de raiva e angústia.
Na terceira noite, decidi que Joninhas tinha que se virar. Voltei a dormir no meu quarto.
Na manhã seguinte, um dos amigos que mora comigo apareceu com uma foto: Jonas e Serafim juntinhos, compartilhando cama. Tenho até hoje essa cena como fotografia mental. Mágica. Desde então, os dois tornaram-se amigos. Mais que isso. Irmãos. Serafim era líder. Jonas, como bom irmão caçula, seguia seus passos, seus pulos. Serafim tinha necessidade de independência, ficava na porta a miar, pedindo para sair. Jonas sentava-se a seu lado, lambia-o, como a lembrá-lo de sua presença. Os vizinhos não gostavam, mas às vezes tínhamos dó de Serafim e abríamos a porta. Jonas não saía, mas passava a noite na janela, a esperá-lo. Serafim passava a madrugada fora. Quando resolvia voltar, já quase de manhã, Jonas estava em alerta. Ia miar em frente ao meu quarto, para que eu abrisse a porta para o irmão.
Os dois andavam juntos pela casa. Era uma parceria bonita. Jonas sentia-se tão protegido por Serafim, que não queria saber de amor humano. Fugia de nossos abraços e mãos grudentas. Era muito amoroso, ele. Mas todo amor que ele tinha era direcionado a um só ser: o gato cinza de grandes olhos amarelos, seu guia e protetor.
Éramos, em casa, quatro pessoas livres e dois gatos presos. Um ao outro, inclusive. E, como éramos livres e cada qual tinha seu caminho, chegou a hora de discutir separações, bens e dessas coisas de divórcio, que nada têm a ver com amor. No meio disso tudo, surgiu a questão: quem ficaria com os gatos? Entramos numa quase unanimidade de que, não importava onde eles ficassem, não deveriam ser separados. Uma das pessoas não concordou. Foi ela quem, ao ir embora, levou consigo o Serafim.
Jonas sendo engolido pela baleia, e eu espantada, tão impotentes que somos perante a vida.
Ele que construiu sua vidinha de gato em torno desse irmão mais velho, companheiro de brincadeiras e explorações pela casa. Ele que se viu diante da ausência súbita. As despedidas felinas não são preenchidas de cartas, visitas, telefonemas para matar a saudade. Serafim tornou-se vazio, apenas.
Mas também não são assim as nossas despedidas humanas, aquelas reais?
Foi nesse período de um Jonas cabisbaixo e constantemente escondido que fui viajar. Passei quase quarenta dias fora e, quando voltei, tudo em casa parecia mudado. Quando abri a porta, apareceu Ringo, um cachorro simpático e orelhudo, latindo pra mim. Subi as escadas e me deparei com outro novo morador: Xavier, um gato que se pensa cachorro, com boca arfante constantemente aberta.
Vi Jonas hostilizar Ringo, por sua natureza canina, e tentar encontrar Serafim neste novo gato que chegava. Mas Xavier é Xavier. É sempre outro, mesmo que com doçura.
Às vezes Jonas aproxima-se de Xavier, procurando a mesma proteção. Este o morde, simplesmente porque neste momento não está a fim. Depois caminham juntos, depois se lambem. Penso que também é amor, porém outro. Ambos se unem contra Ringo, o cachorro. Inicialmente, sentiam-se ameaçados. Acredito que hoje sejam inimigos por esporte. Talvez também seja amor. Mas outro. Sempre outro.
Eu, que tanto fui Jonas, observo-o com espanto. É assim assustadora a inevitabilidade das mudanças e a inexorável falta de controle que temos perante essa baleia imensa.
De tudo que se tem, hoje só tenho esse pasmo.
Só sei que a vida engole...
5 comentários:
Belo texto! E como a vida engole.Vou compartilhar.
Ai Lian, esse texto doeu! A vida é muito dura e doída. E esse tal de vazio... Eu acho que nunca vou aceitar a baleia. Insistência em esquecer que ela existe!
primeiro fomos vomitados e depois a engolidos.
Dói saber que é inevitável a presença da baleia...
A baleia engole. Mas o bom é que a gente nada dentro e fora dela.
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