Em parte por falta de tempo, pelo trânsito natural das coisas, pelos compromissos atrasados que me esperavam na volta. Mas em boa parte porque este fosse o país mais difícil de processar. E ainda não consegui entender seu impacto em mim. Eu fiz rabiscos, rascunhos. E faltava sempre. Por isso hoje me sento à frente do computador, forçando-me a relatar algo que talvez não baste, que permanece indigesto, em processo.
Eu esperava a identificação fácil, já que me considerava andina de alma, pelo espírito indígena, pelas cores, pela paixão por montanhas e milhos. E o que encontrei no Peru foi escavação. Foi denso, lento, profundo. As paisagens misturavam extremos de beleza e melancolia. "Parece que tudo por aqui está em construção", me disse meu companheiro de viagem, enquanto olhávamos as casas sem pintura. "Serão construções ou ruínas?", eu brincava, diante das cidades das antigas civilizações que visitávamos.
Foram longos os trajetos, os dias nas estradas. Às vezes algumas paradas. Mulheres cozinhando nas ruas, vamos jantar por aqui. E os senhores comiam seus pratos fartos, conversando sobre os caminhos. E sempre me pareciam tão dignos os tais senhores.
Eu escolhera pelo guia a trilha que queria fazer na Cordillera Blanca: "Não exige técnica, basta que a pessoa esteja aclimatada". Após dois dias em Huaraz, pensei estar. E iniciei uma trilha que iniciou, também, em mim, caminhos novos. Foram muitas as inaugurações: o primeiro acampamento selvagem, baixíssima temperatura, altitude. Tinha sempre o ar que me faltava. As dores de cabeça, apesar de todas as formas de coca (com exceção de cocaína) que consumi. À noite, o frio que congelaria os sonhos, se me fosse possível adormecer.
Foram quatro dias em que cada passo era árduo. A cada nova subida, eu pensava em desabar, parar, ficar por ali mesmo, não fosse a necessidade de uma barraca que quase amenizasse o frio da noite. O inferno era os outros, como já sabia Sartre. Não bastasse uma aversão que já tenho a acompanhar o ritmo alheio, desta vez eu nem conseguia acompanhá-los, ainda que quisesse. Não queria. Eu lera que cada pessoa reage de modo diferente à altitude. Mas não estava preparada para reagir da pior maneira. Eu que sou acostumada a ser pequena em tudo, menos em transitar em meio à natureza. Eu que só sabia ser pequena sozinha, sem depender de ninguém. Tive que aceitar ser ainda menor.
Alguns dias antes de iniciar a viagem, eu levara um amigo à Pedra da Gávea. A certa altura, ele brincou: "Vou te ofender: quer ajuda?" Era piada, mas revelava tanto. É que, no espelho, eu era a menina que sempre recusava quando alguém me oferecia a mão.
E súbito descobri meu real tamanho. Ser menor, sempre menor. Crescer para aprender a ser pequena. E levar esta lição para as novas trilhas, para os novos trilhos, para os trens.
E houve tanto mais. Machu Picchu e suas ruínas, talvez um dia eu fale disso. Houve as estradas, os estragos. É que tanto de mim eu encontrei ali, não no modo simples e esperado da identificação fácil. Mas na dor da escavação.
Eis-me aqui: Ruína e construção.
3 comentários:
Nossa! Que vontade de conversar com você sobre a viagem!! Chega setembro!
lindo, lindo.
se curiosidade matar, já morri há dois meses rsrsrs
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