sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Um outro encontro

Ela está encolhida sob o piano. Como um indiozinho, tem o cabelo muito liso cortado em cuia. "É menina ou menino?"- alguns perguntam, quando vêem-na pendurando-se sobre os galhos das árvores ou correndo descalça pela calçada. Hoje sua fragilidade entrega: É menina. Porque sei que tem medo, aproximo-me devagar. É preciso que ela veja que também sou criança, para que ela não fuja. Somos bichos, eu e ela. Piso devagar e cuido para que a respiração quase ofegante saia silenciosa. Basta um gesto mais brusco para que desabemos precipícios de medo. Somos bichos. Arbitrariamente jogadas na selvageria do mundo dos homens. Sento-me ao seu lado:

- Eles não vão te levar - digo, tentando confortá-la.

Ela me olha espantada. Nunca contara seu medo. A ninguém. Seu mundo nunca coubera no mundo dos outros.

-Eles. As pessoas da creche. Eles não vão te levar. - repito.

Seus lábios tremem, como indecisos entre rir ou chorar.

- Pode chorar. Eu também choro.

- Você também? Mas você não é adulta?

Não sei o que responder. Sou?

- Talvez. Mas eu choro.

- Pensei que as pessoas, quando crescessem, aprendessem a controlar o choro.

- Eu também pensei. Mas veja só: não aprendi. E sabe o que mais? Você também não aprenderá.

- Mas, quando eu choro, eu sempre levo bronca.

- Não é você quem está errada.

- Eu sei. Porque não é de propósito. E quanto mais me mandam calar, maior é a força...

- Um dilúvio.

Entreolhamo-nos. A imagem do dilúvio reverberando. Somos pequenas para contê-lo. Precisamos chorar, eu sei.

- É como aquele dia, em que ela partiu.

E, porque falamos a mesma língua de bicho, não é preciso que ela saiba quem sou, ou que entenda. Nós nos entendemos.

- Sim, é como aquele dia. - ela concorda - Eu não conseguia parar de chorar. Foi o dia em que minha mãe foi embora. Ela me explicou que tinha que ir pro Rio de Janeiro fazer doutorado. E disse que vai voltar.

- Mas dói, né?

- Dói. Doía tanto que eu não conseguia dormir sozinha, por isso eu fui pra cama da minha irmã. Mas eu chorava muito, sabe?

O dilúvio, eu pensava. Eu sei.

- Mas acho que meu pai pensou que eu e minha irmã estávamos brigando, porque ele entrou no quarto e me mandou voltar pra minha cama. - ela continuava - Mas eu continuava chorando e continuava doendo. E doía tanto a falta, que era insuportável estar sozinha. Por isso eu voltava sempre pra cama dela.

- E o meu pai, quer dizer, seu pai... sempre te mandava de volta pra sua cama.

- Eu queria explicar que não estávamos brigando, que eu chorava porque estava triste, porque minha mãe tinha ido embora, porque sentia saudades...

- Mas quer saber? Hoje acho que talvez ele soubesse. Quer dizer, não que ele soubesse, mas talvez ele não pensasse que vocês estavam brigando...

- Então por que ele me mandava pra minha cama?

- É que os adultos também são crianças. É que talvez essa dor que era sua também fosse dele. E talvez a única coisa que ele pudesse fazer fosse mandar a dor de fora se calar, ou sair de seu lugar, já que aquela, que era a dele, não obedecia.

- Eu não entendo.

- Nem eu entendo direito. Mas é que a gente pensa que os adultos sempre têm uma razão em suas atitudes. Mas eles são como nós. Eles também não entendem. A falta também dói neles, como dói na gente.

Vejo confusão em seus olhos. Ela tem apenas sete anos de idade. Ela confia que exista uma lógica no mundo dos adultos, tão distante do seu. Mas eu, que estive lá, preciso lhe contar do que vi. Porque ela tem sua lente própria. Porque seu universo tem esperanças e medos e sonhos e monstros e um imenso desamparo. Porque, se ela dissesse temer bicho-papão, qualquer adulto lhe diria que ele não existe. Mas ela não abre, Pandora às avessas. Ela não fala. Ela sobe em árvores e se esconde sob o piano, apenas.

- Lembrei de algo que preciso lhe dizer.

Ela me olha curiosa. Continuo:

- Se você engolir semente de laranja, nada vai lhe acontecer.

- Mas meu pai disse que um pé de laranja iria brotar na minha barriga.

- Era uma piada. Ele não achou que você acreditaria e muito menos que choraria de medo sempre que engolisse uma, imaginando uma laranjeira crescendo em você e explodindo seu cérebro.

Ela que confiava no mundo dos adultos.

Eu estive lá e voltei. Somos tão iguais. Estamos caladas, pensativas, quando ela interrompe o silêncio, retomando nosso primeiro assunto:

- Você disse que eles, as pessoas da creche, não vão me levar.

- É verdade.

- Você tem certeza? Eu acho que eles querem me levar pra morar na creche, já que minha mãe foi embora. Sempre que eles chegam meu pai fica chateado.

- Essa creche não é para você, é para crianças carentes. Eles são da LBV, vêm apenas recolher doações.

- Não são mensalidades?

- Não.

Quisera eu que, vinte e dois anos atrás, alguém tivesse me explicado isso. Pouparia uma infância inteira do constante medo da partida. Vejo o alívio em sua face:

- Ufa! Agora sei que ninguém vai me levar embora daqui...

- A creche não vai te levar embora. Mas eu vou.

Saio puxando-a pela mão. Ela vem sempre comigo. A criança e seu eterno pátio de desamparo e ilusões.



3 comentários:

Melanie Mangano disse...

Lian!! A cada palavra lida , via você.... Eu me sinto assim tb!! Como uma criança... Faço 30 amanha, mas não me sinto 30... Quando Vejo minha mãe eu tambem vejo uma criança aprendendo . Tudo tão estranho.... Cuido de crianças mas aprendo com elas muito mais do que ensino.... Muito bom ter lido isso agora...como se eu nao estivesse sozinha...Um beijao para vc enorme!!! Saudades demais!!!

Clarice disse...

Muitas vezes o medo cresce conforme deixamos a criança para trás. Pena que tentar ser criança não ajude sempre.
Criança deveria vir com legenda, não acha? Eu que já criei um filho, ainda me pergunto qual medo dele eu não vi.
Xi, isso puxa um divã daqueles!!! rs

Pedro disse...

Oi, temos uma amiga em comum e por isso acabei entrando no seu blog, gostei muito de tudo que li por aqui e acabo voltando de vez em quando..., essa musica da Priscilla Ahn me lembrou seu texto por isso resovi te mandar o link (http://www.youtube.com/watch?v=MKfDwChOoHI&sns=fb) Obrigado pelos sorrisos proporcionados e por me fazer refletir :-) P.