Apesar de seu bom português, minha mãe, nas conversas cotidianas, traz um vício de sua língua materna: ela ignora o tempo verbal pretérito e conta todas as histórias no presente. De forma que se misturam os anos, as ações, as gerações. Às vezes a pego contando sobre meu avô, por exemplo, que faleceu quando eu ainda era criança pequena: "O seu avô é muito exagerado. Quando eu falo que quero comer alguma coisa, ele compra uma caixa inteira." Nós a corrigimos: "Ele não compra, mãe, ele comprava. Você fala como se ele ainda estivesse vivo".
Outro dia me ocorreu a dúvida. É que de repente eu percebi que o português errado talvez revelasse uma verdade certa. É que, como numa corda bamba, nós caminhamos sobre esse tempo que inventamos linear e tratamos de dividir em calendários e relógios. E acabamos acreditando nesse mundo, em que deixamos um passado para trás e seguimos em direção ao futuro. E esquecemos que o "eu sou" compreende um eu que fui e um eu que serei, e que separamos por questões metodológicas, já que nos é impossível compreender esse eu que transcende a linguagem.
Porque na verdade meu avô é. Ele faz. Ele compra caixas inteiras de comida. Ele toca piano, tem uma cadeira de balanço e trata bem todos os funcionários. Meu avô tem uma pizzaria com portas que abrem e fecham sozinhas. Eu tenho medo do porão da casa enorme, mesmo que eu não consiga ver esta entre as infinitas faces da esfera. Por isso eu penso que os sustos com as outras crianças no porão são um fragmento separado do que sou. E insisto em localizá-lo atrás de mim, nesta corda bamba que inventamos, frágil que nos é a vida. E assim criamos o finito. Com a necessidade de pontuar isso que parece muito maior do que nós, mas que é nossa medida exata: o tudo. Esquecemos, mas somos que não acaba mais.
Todo ano eu e meus amigos comemoramos juntos o Natal, em uma festa que denominamos (sem criatividade nenhuma, é verdade) de Natal dos Amigos. Por vezes alguém me pergunta por que celebramos o Natal em janeiro, ou fevereiro, ou março. Eu sempre explicava que valia a data em que conseguíamos nos reunir, até me dar conta de que vale qualquer data porque não importa a data. É sempre hoje. Somos sempre Natal.
E eu sou essa conjunção de tudo que vive e morre e por isso vive sempre. E ao mesmo tempo a ilusão de que me encerro no tempo e me encerro em mim. Mas, já que precisamos dos calendários e relógios para administrar as ilusões, também escolhemos um dia no calendário para ritualizar o Amor: esta lembrança de que somos Uno. A comunhão.
Juntemo-nos, pois, à mesa, para celebrar a Vida, que sempre é.
Hoje é Natal.
Que seja.
7 comentários:
Curti =) Bjao
É isso aí! E aí de quem disser que não é Natal! rs A parte ruim é que fico velha duas vezes no ano ahahha
bjo
Muito bem escrito. As palavras do seu texto é um ótimo combustível para nossa autorreflexão. Formidável!
Que seja sempre presente esse Natal de vocês! Adorei!
Um texto primoroso. Você acertou em cheio: somos uma conjugação. E sua avó sabe das coisas!
Como "diz" aquele velho cientista descabelado: tudo é relativo.
Abraço.
Ops! Chamei sua mãe de avó.
Bravo. Delícia as imagens e refexões. Uma 'pequena epifania'.
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