Amor é coragem.
Durante muito tempo ela foi, para mim, estranhamento. Lembro de um dia em que conversávamos sobre escolhas de amizades e ela afirmou que se tornava amiga de qualquer um que estivesse aberto para isso. Respondi que isso não podia ser, porque sempre temos preferências e afinidades. Virgínia disse que podia. Ela era. Levei tempo para perceber que Virgínia pode. E aos poucos ela se tornou referência para mim. Uma mestre à la Alberto Caeiro, com sua sabedoria simples, que destila verdade.
Virgínia era chamada de bruxinha. Por quê? - perguntei. Porque ela enxergava. Pedi que me enxergasse. Ainda era cedo, eu a conhecia pouco e nem sequer a chamava de amiga.
Ela enxergou em mim uma alma criança: um espírito novo no mundo, em uma de suas primeiras encarnações.
Não sei o quanto acredito em almas como entidades individuais duradouras, mas a verdade é que sempre me lembro de Virgínia e penso que, de alguma forma, ela tem razão. Só posso ser uma alma criança, pois não consigo me acostumar com o mundo.
E, em um momento em que tanta voz de amor se faz necessária, porque o que ouvimos reverberar são discursos de ódio, me vi calada: assim, uma alma criança, assustada e impotente. É permitido matar pobres nas favelas? É permitido atacar mulheres com roupas curtas? Com argumentos se combate a ignorância, mas com que armas se combate o ódio, esse tão pesado e tão cru, que tem se instaurado?
Estou perdida.
Então me calei, porque achei que minhas palavras, neste momento, seriam completamente óbvias e vãs. Se preciso dizer para alguém que o estupro é errado, então esse alguém está fora do meu canal de comunicação.
Mas vai além, o debate. Ou melhor, vai aquém. Reside no nível do muito pequeno e do muito próximo. É preciso falar sobre delicadeza.
Estupro é o ápice. E foi tão banalizado que deixamos de enxergar essa violência que pertence a todas as instâncias da vida social. E que nos oprime. E que nos aprisiona. A todos nós, não se enganem, homens e mulheres. Também deve ser aterrador ter que se passar por forte. Deve ser solitário não poder chorar.
No Carnaval deste ano um garoto tentou me beijar à força. Não falo em beijo roubado, falo em força. Em segurar meus braços. Tudo porque eu havia sido legal. Porque havia conversado com ele, quando ele puxou assunto.
O machismo atinge esse nível da delicadeza, e isso para mim é o mais grave. A opressão nos torna pessoas que odeiam e que reproduzem o ódio.
Habitam em minha memória minhas primeiras imagens do feminino. Do saber-me mulher. Eu tinha em torno de onze anos de idade, minha irmã tinha treze. Íamos a pé para as aulas de natação e levávamos cantadas de marmanjos de bicicletas. Havia muitos terrenos baldios no caminho. Eu tinha pavor de estupro. Lia reportagens sobre o assunto e pensava que, se um dia acontecesse comigo, eu teria que me suicidar.
Desde então passei a ver os homens como ameaças. A maioria deles não ajuda, pois lança olhares e palavras na rua que tentam me colocar em meu lugar de objeto. Desde que cresci, me defendo: respondo às grosserias. E o surpreendente é que as pessoas estranham. Reagem como se a violenta fosse eu.
Semana passada entrei pela segunda vez na farmácia vizinha, para reclamar do comportamento dos funcionários que ficam na porta. Me deram razão como consumidora, não como cidadã, ou humana ou mulher. Os consumidores têm sempre razão. Mas e a pessoa? O gerente prometeu tomar providência, mas vi em seus olhos a incompreensão. O que tem de mais em receber um "elogio" ou um assovio ao passar na rua?
O que tem é isso: Você é vista como objeto sexual (tentei encontrar outra expressão, por esta ser tão banalizada, mas a expressão é essa mesma. Você é objetificada. E sexualmente). E você acaba sendo obrigada a andar de cabeça baixa, a não olhar as pessoas nos olhos, a não enxergar. Porque, se você se abre como humana, a interpretação que se tem é que você dá uma abertura sexual. A culpa do ataque, seja de que nível de violência for, é vista como sua, mulher. Pela roupa que se usa, pelo horário em que se anda, pelo sorriso que se dá.
Então você é obrigada a se proteger e acaba se passando por arrogante. Toda mulher sabe do que falo.
Eu aprendi a me fechar desde muito cedo. E quando tentei abrir, não encontrei caminhos. Porque dou bom dia ao porteiro e ele me responde com olhar de tarado. "Eu queria - e tento - ter a liberdade de ser mais legal" - desabafei com um amigo, ao explicar-lhe como me sinto oprimida por ser mulher. "Eu queria, sinceramente, poder falar com as pessoas na rua, poder enxergar e ser enxergada". Eu queria ter relações mais humanas e com menos medo.
E o que a gente não vê é que o machismo nos priva - a todos - exatamente disso: de um contato honesto entre as pessoas. Impõe ao homem um olhar de "pegador" e à mulher um muro de proteção. E a gente perde o que de melhor pode haver: a troca, a parceria, o amor. E as tantas couraças nos fazem odiar. E viver cercados por discursos de ódio.
Por isso eu vejo um caminho em Virgínia, que tem tanta força e coragem para amar apesar do mundo. E eu tento me espelhar em Virgínia. E me sinto tropeçando sempre.
Virgínia é um espírito sábio. E eu ainda sou uma alma criança, desacostumada com o mundo.
Preciso de delicadeza para conseguir engatinhar.