segunda-feira, 31 de março de 2014

Uma alma criança no feminino



Virgínia é uma menina que é enorme em tudo. Enormes cabelos cacheados de espírito livre. Enorme boca de sorriso fácil. Enormes olhos que observam o mundo em seus detalhes. E enorme coragem.

Amor é coragem. 

Durante muito tempo ela foi, para mim, estranhamento. Lembro de um dia em que conversávamos sobre escolhas de amizades e ela afirmou que se tornava amiga de qualquer um que estivesse aberto para isso. Respondi que isso não podia ser, porque sempre temos preferências e afinidades. Virgínia disse que podia. Ela era. Levei tempo para perceber que Virgínia pode. E aos poucos ela se tornou referência para mim. Uma mestre à la Alberto Caeiro, com sua sabedoria simples, que destila verdade. 

Virgínia era chamada de bruxinha. Por quê? - perguntei. Porque ela enxergava. Pedi que me enxergasse. Ainda era cedo, eu a conhecia pouco e nem sequer a chamava de amiga. 

Ela enxergou em mim uma alma criança: um espírito novo no mundo, em uma de suas primeiras encarnações. 

Não sei o quanto acredito em almas como entidades individuais duradouras, mas a verdade é que sempre me lembro de Virgínia e penso que, de alguma forma, ela tem razão. Só posso ser uma alma criança, pois não consigo me acostumar com o mundo. 

E, em um momento em que tanta voz de amor se faz necessária, porque o que ouvimos reverberar são discursos de ódio, me vi calada: assim, uma alma criança, assustada e impotente. É permitido matar pobres nas favelas? É permitido atacar mulheres com roupas curtas? Com argumentos se combate a ignorância, mas com que armas se combate o ódio, esse tão pesado e tão cru, que tem se instaurado?

Estou perdida.

Então me calei, porque achei que minhas palavras, neste momento, seriam completamente óbvias e vãs. Se preciso dizer para alguém que o estupro é errado, então esse alguém está fora do meu canal de comunicação.

Mas vai além, o debate. Ou melhor, vai aquém. Reside no nível do muito pequeno e do muito próximo. É preciso falar sobre delicadeza. 

Estupro é o ápice. E foi tão banalizado que deixamos de enxergar essa violência que pertence a todas as instâncias da vida social. E que nos oprime. E que nos aprisiona. A todos nós, não se enganem, homens e mulheres. Também deve ser aterrador ter que se passar por forte. Deve ser solitário não poder chorar.

No Carnaval deste ano um garoto tentou me beijar à força. Não falo em beijo roubado, falo em força. Em segurar meus braços. Tudo porque eu havia sido legal. Porque havia conversado com ele, quando ele puxou assunto.

O machismo atinge esse nível da delicadeza, e isso para mim é o mais grave. A opressão nos torna pessoas que odeiam e que reproduzem o ódio. 

Habitam em minha memória minhas primeiras imagens do feminino. Do saber-me mulher. Eu tinha em torno de onze anos de idade, minha irmã tinha treze. Íamos a pé para as aulas de natação e levávamos cantadas de marmanjos de bicicletas. Havia muitos terrenos baldios no caminho. Eu tinha pavor de estupro. Lia reportagens sobre o assunto e pensava que, se um dia acontecesse comigo, eu teria que me suicidar. 

Desde então passei a ver os homens como ameaças. A maioria deles não ajuda, pois lança olhares e palavras na rua que tentam me colocar em meu lugar de objeto. Desde que cresci, me defendo: respondo às grosserias. E o surpreendente é que as pessoas estranham. Reagem como se a violenta fosse eu. 

Semana passada entrei pela segunda vez na farmácia vizinha, para reclamar do comportamento dos funcionários que ficam na porta. Me deram razão como consumidora, não como cidadã, ou humana ou mulher. Os consumidores têm sempre razão. Mas e a pessoa? O gerente prometeu tomar providência, mas vi em seus olhos a incompreensão. O que tem de mais em receber um "elogio" ou um assovio ao passar na rua?

O que tem é isso: Você é vista como objeto sexual (tentei encontrar outra expressão, por esta ser tão banalizada, mas a expressão é essa mesma. Você é objetificada. E sexualmente). E você acaba sendo obrigada a andar de cabeça baixa, a não olhar as pessoas nos olhos, a não enxergar. Porque, se você se abre como humana, a interpretação que se tem é que você dá uma abertura sexual. A culpa do ataque, seja de que nível de violência for, é vista como sua, mulher. Pela roupa que se usa, pelo horário em que se anda, pelo sorriso que se dá.

Então você é obrigada a se proteger e acaba se passando por arrogante. Toda mulher sabe do que falo.

Eu aprendi a me fechar desde muito cedo. E quando tentei abrir, não encontrei caminhos. Porque dou bom dia ao porteiro e ele me responde com olhar de tarado. "Eu queria - e tento - ter a liberdade de ser mais legal" - desabafei com um amigo, ao explicar-lhe como me sinto oprimida por ser mulher. "Eu queria, sinceramente, poder falar com as pessoas na rua, poder enxergar e ser enxergada". Eu queria ter relações mais humanas e com menos medo. 

E o que a gente não vê é que o machismo nos priva - a todos - exatamente disso: de um contato honesto entre as pessoas. Impõe ao homem um olhar de "pegador" e à mulher um muro de proteção. E a gente perde o que de melhor pode haver: a troca, a parceria, o amor. E as tantas couraças nos fazem odiar. E viver cercados por discursos de ódio.

Por isso eu vejo um caminho em Virgínia, que tem tanta força e coragem para amar apesar do mundo. E eu tento me espelhar em Virgínia. E me sinto tropeçando sempre. 

Virgínia é um espírito sábio. E eu ainda sou uma alma criança, desacostumada com o mundo.

Preciso de delicadeza para conseguir engatinhar.


terça-feira, 11 de março de 2014

A voz que grita



Eu fui uma criança de poucas palavras e muita cambalhota. Estava sempre pendurada em alguma coisa: em cima das árvores, nos muros, na varanda. A grande façanha foi conseguir pular de cima do prédio (sim, de cima do prédio) para a janela do apartamento logo abaixo, junto com a Sandinha, amiga igualmente destemida.

Lembro de uma infância silenciosa, e talvez não seja bem assim. Minha tia, Stella, costuma dizer que gostava de me escutar, e que eu contava várias histórias engraçadas. Acho que houve mesmo um momento em que eu era a engraçada da família, mas me é uma lembrança tão distante, que é como se não fosse eu. Eu me lembro é do silêncio. E de muitas palavras, mas nunca minhas. Sempre tive apreço às palavras, desde que, cedo, aprendi a ler e folheava afoita o volume de poemas e rimas do Mundo da Criança. Até hoje suas imagens e versos povoam minha memória.

E desde cedo minhas aulas preferidas eram as de redação. Era quando eu dizia o que quase nunca dizia com a voz.

O fato é que só depois de crescida comecei a falar, falar mesmo. Em alguns momentos, passei a falar até bastante, até mais do que deveria. Em outros, como boa taurina, ruminava e guardava tudo ali, no não-dito. Mas a idade faz dessas coisas e, de repente, me vi dizendo coisas das quais só me dava conta no milésimo de segundo seguinte: "Ei, você está furando fila!"

Falei. Antigamente sofria mais.

Curioso é que, quando passei a falar, me dei conta de que não tinha tanto a dizer. Não de mim. E que tinha mais é que escutar do mundo, que tem tantas e tantas histórias que devemos ouvir. E me veio esse senso de urgência de um mundo que precisa ser escutado, de histórias que precisam ser contadas. E percebi que, quando Galeano ou Rubem Braga contam causos pequenos de pessoas pequenas, eles falam na verdade de nós: esse ser universal e humano que se equilibra entre o amor e o poder.

Sexta e sábado passados participei do ato dos garis por direitos. Quis me somar para ampliar a voz daqueles que há muito não a têm. Gritei muito, porque queria que a cidade nos escutasse. Mas também escutei, escutei demais. Trabalhadores que se aproximavam para contar espontaneamente sobre suas vidas e suas condições de trabalho:

- Sou gari há vinte anos. Antigamente as condições eram melhores, mas foi decaindo cada vez mais. Hoje eu tenho vergonha de entrar no mercado, porque não consigo comprar o que preciso. O arroz e o feijão ainda consigo, mas uma carne, uma coisinha a mais, já não consigo. Como vou levar as crianças ao mercado?

- Nosso gerente não se importa com nossa humanidade, só com as tarefas cumpridas. No outro dia um companheiro nosso morreu em trabalho, esmagado por um caminhão. Ele mandou retirar o corpo, imediatamente colocou alguém para substituí-lo e ordenou que voltássemos a trabalhar. Mas como eu posso voltar a trabalhar, se meu companheiro acabou de morrer?

- Antigamente os garis eram ignorantes, às vezes trocavam sua força de trabalho por uma garrafa de cachaça. Mas hoje não. Hoje somos estudados, temos formação. - vários fizeram questão de me dizer.

E houve o que profetizou:

- Preste atenção no que eu digo: Daqui a alguns anos você contará a seus filhos sobre 2014. Este é um ano histórico, este momento será para sempre lembrado.

Escutar o que eles têm a dizer, mesmo pelo que não dizem. Escutar o lixo todo amontoado pelas ruas durante sua greve. O lixo que contava da importância da profissão, mas não só. O lixo que contava da indignação, mas não só. O lixo que conta de nós.

Confesso que achei bonito aquele lixo catártico espalhado pelas ruas. Porque fomos obrigados a vê-lo: isso que somos. Porque estamos acostumados a que nos tirem da frente, para que sigamos brincando que ele não existe. Mas lá estava a montanha de lixo. Nós a produzimos. E, mesmo que seja Carnaval, é possível que uma sociedade produza tanto, tanto lixo assim e saia impune?

Como é bonito quando o mundo diz o que o mundo tem a dizer.

E é preciso ter voz para não adoecer: foi o que a vida me mostrou, de forma alegórica. Foi logo depois que saí do ato dos garis. Gritei muito e perdi a voz. Necessitava de muita energia para soprar cada palavra, até que me calei. E, junto com a voz, perdi a energia vital. Passei dois dias de cama. Ou melhor, de sofá. Na segunda-feira os compromissos já chamavam, mas permaneciam fracos, a voz e o corpo. De vez em quando eu usava uma energia a mais, para fazer festinha a algum gari que porventura eu encontrasse na rua.

Passei a vê-los com alegria, enquanto varriam as calçadas.

Mas confesso que continuo desejando o lixo, com suas montanhas imensas a se impor à nossa vista. Sinto que não escutamos o suficiente sobre quem somos e para onde vamos. Sobre nossos excessos e nossos descaminhos. Sobre nosso papel e nosso impacto no mundo. Mundo que não tem voz adoece, e o lixo ainda tem muito o que gritar.

Que saibamos escutar.

Amém.



sexta-feira, 7 de março de 2014

O Carnaval da Comlurb



Saímos da manifestação dos garis e nos sentamos para almoçar. A Tathiana, que é essa amiga querida que vibrou comigo e cantou comigo e lutou ao meu lado, perguntou, quase afirmando:

- É claro que você vai escrever sobre hoje, né?

- É... Talvez...

Eu não sabia. Como poderia escrever sobre tanto, se pra falar do dia de hoje eu teria que falar sobre Carnaval e sobre opressão e sobre a minha infância.. e depois cada fio que puxava outro fio, o que tornava quase impossível a concatenação de palavras coesas. É que, de tanto a ser dito, aquilo tudo se misturava em um todo inefável, que eu poderia chamar de minha vida ou de nossa vida ou de história do mundo. Parecia grande assim.

O fato é que eu ainda vestia aquela camisa alaranjada: o uniforme da Comlurb que um gari tirou do corpo e me ofereceu de presente:

- É seu.

- Tem certeza?

E me curvei um monte de vezes e agradeci, com a mão no coração e a emoção à flor da pele.

Vesti a camisa. Mas o engraçado era que, mesmo uniformizada como eles, havia algo em minha testa, ou em meu corpo, ou em minha cor, não sei bem, que denunciava que eu não era um deles. Uma coisa de classe média que se entrega e me fazia tão facilmente reconhecível ou distinguível ali no meio. Eles passavam e agradeciam o apoio, brincando e rindo, que é esse jeito de ser alegre apesar de.

Eram quase todos pretos. E estavam indignados, mas batucavam, pois desse sangue é feito o samba. Aprendiam ali, naquele momento, a serem visíveis. Um deles me explicou:

- Nós finalmente nos unimos para lutar pelos nossos direitos. Foi por causa das manifestações do ano passado, que a gente viu que era possível.

As manifestações do ano passado. Que bonito vê-las reverberarem logo assim.

Quando saí de casa pela manhã, eu temia e esperava por violência policial. Por isso fui, também. Para não deixar só uma classe que já é diariamente oprimida. Mas, em vez de violência, houve Carnaval. Mais até do que aquele que mal acabara na quarta-feira de cinzas.

Foi na terça à noite, na verdade, que eu me dei conta de que o Carnaval terminara. Era o Aterro do Flamengo e era a Orquestra Voadora. Um momento olhei pros lados e me ocorreu: "isso não é Carnaval, é balada". E fui embora.

Carnaval, para mim, é quando as pessoas brincam e se falam e se olham sem medo. Balada é uma aproximação mais agressiva, é uma coisa de querer "pegar", beijar, sexualizar. Não tem enxerga, mas desejo cego. É essa coisa de querer. E eu que não suporto que queiram nada de mim...

Gosto de Carnaval pela energia de sermos um e de estarmos juntos. Hoje, na manifestação dos garis, éramos assim: juntos. E gritávamos palavras de ordem, batucávamos, cantávamos.

Uníamos o que fora segregado tempos atrás, por uma estrutura que nos foge. Vem de muito antes, mas, no tempo de mim, volto à infância. Lá, quando corríamos atrás do caminhão do lixo, gritando: "Lixeiro! Lixeiro!" Até que eles nos perseguissem e fugíssemos para a proteção do prédio. Eu era muito pequena e acho que acreditava que, se eles nos pegassem, levariam-nos embora em seu caminhão. E não consigo me lembrar se era apenas uma brincadeira ou se tinha um julgamento de valor. Mas sei que mais tarde tinha, quando eu, já maior, estudava em uma escola burguesa e católica. Tínhamos olimpíadas anuais entre as turmas. Cada uma delas vestia uma camisa de cor diferente, para que diferenciássemos as equipes. Havia sempre algum time de uniforme alaranjado. E nosso modo de ofendê-los era gritando: "Gari! Gari!" Como se fosse algo menor. Ou como se equivalessem, eles próprios, ao lixo.

Que nós jogamos, diga-se de passagem.

Então hoje, enquanto cantava com eles, me ocorria tudo isso: palavras como dignidade, igualdade social, humanidade. E eu vestia a camisa deles e, embora permanecesse do outro lado da fronteira, aquela da visibilidade, eu tentava me redimir. E ser humana, apenas.

E eis que é Carnaval.