sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014
O caminho inverso
Eu estava andando pela Rua do Catete, quando ouvi atrás de mim alguém falando ao telefone:
- Ela conseguiu ver no fundo de mim. Ela viu no fundo de mim e pediu para eu ter paciência. Mas ela viu no fundo de mim.
Fiquei curiosa para saber quem falava aquilo e o observei, quando passou. Era um jovem em seus vinte e poucos anos, talvez menos, aparência descolada, camiseta em tie dye. Ele passou por mim e de repente não pude mais escutar a conversa. Acelerei o passo. Confesso que, discretamente, até dei uma corridinha. Mas, quando o alcancei, ele mandou beijo e desligou o telefone. Droga.
Tive certa inveja. Pela Rua do Catete havia um jovem que fora enxergado por outra pessoa. No fundo de si.
E eu? Quem enxergará no fundo de mim, se nem eu enxergo no escuro? Ali no fundo mais fundo, onde não entra luz. Eu entro apalpando, com medo e com coragem, mas mal distingo as texturas. Intuo, às vezes. Mas enxergar, definitivamente não. Sou cega no escuro de mim, e aí reside o pavor e a liberdade.
Pois eu mergulhava nesse fundo, quando encontrei uma isca. Um amigo querido que veio aqui em casa fazer um suco amoroso. Em vez de hortelã em maço, trouxe-a em vaso, para que houvesse vida após o suco.
Eu mordi a isca da vida da hortelã e, sem que me desse conta, fui puxada para cima, lá onde há luz. Comecei a organizar de fora para dentro. Arranjei muda de manjericão e de ixora. Comprei vasinhos coloridos e mais um vaso enorme, para plantar capim-limão, meu atual sonho de consumo.
Vim do Largo do Machado carregando vinte quilos de terra, quase morrendo, claro. Na entrada da vila, larguei um dos sacos, para buscá-lo depois. Um menininho, que brincava de skate, me chamou:
- Moça, ficou um pacote aqui no chão.
- Eu sei. É que está muito pesado. Daqui a pouco volto para buscar.
- Quer ajuda?
- Não precisa. Está pesado mesmo. Vou levar este até a porta e já volto.
Larguei o pacote de dez quilos em casa e, quando ia sair para buscar o outro, me aparece o menininho, com o pacote sobre o skate. Agradeci emocionada e pensando que, depois de criar minhas plantinhas e publicar meu livro, vou querer fazer um filho.
Enchi a floreira com vasinhos de plantas e continuei colorindo, de fora para dentro. Montei estante, pendurei quadros, enchi a cama de almofadas indianas. Meu quarto, que estava uma bagunça, começou a ganhar certa ordem. Sempre de fora para dentro. Fui arrumando, arrumando. Até conseguir, não enxergar, mas me locomover melhor no escuro. O fundo de mim.
Há momentos em que é preciso preencher a vida de cheios para enxergar melhor o vazio, essa matéria de que somos feitos, nós e o universo.
Às vezes é só pegar o caminho inverso.
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