Há dias que essa novela vem tomando conta dos meus dias. E
que tento contá-la. Mas cada tessitura é feita de muitos fios, alguns de outros
novelos. E todos compõem a mesma trama. Por isso ela se desenvolve em quatro
capítulos, mas com vários parênteses: os outros fios, sem os quais uma história
é impossível.
Capítulo 1:
Soube-se que na Rua das Quaresmeiras vivem os corações mais
moles da vizinhança. O fato é que ela apareceu por ali, decidida a ficar.
Entrava em nossa casa sem maiores pudores. Havia constantemente uma porta
aberta e, mesmo quando não, ela sempre podia contar com a portinha dos gatos.
Eles, que em outras circunstâncias se impunham perante os
animais vizinhos, por algum motivo recuaram diante dela. Mesmo Rafinha, o mais
territorialista de todos, que costumava expulsar aos berros qualquer outro gato
que ousasse aparecer, passou a agir diferente. Fingia não vê-la, ainda que ela
entrasse em casa diante de seu nariz. Quando ficou frente a frente com ela,
fugiu. João não dava a mínima e continuava blasé sobre o braço do sofá, como se
não notasse aquela presença estranha. Miki ainda tentou discutir com ela, mas,
ao seu menor gesto brusco, saiu correndo também. No dia em que não correu,
levou uma mordida na orelha.
Minha irmã concluiu que ela não pertencia a nenhum vizinho:
- É uma gata de rua.
- Mas como ela veio parar aqui?
- Alguém deve tê-la trazido. Ou ela passou pela portaria.
- Ela está com fome, vamos alimentá-la.
- Mas, se a alimentarmos, ela vai voltar sempre.
- Mas, se não a alimentarmos, ela vai ficar com fome.
Ela voltou sempre. Colocávamos ração e água em frente à
porta, mas ela queria mais do que comida: queria um lar. Tentava entrar em casa
e conquistar nossa afeição, esfregando-se em nossas pernas. E a gente tentando
não se render àquele amor tão fácil.
Meu pai já andava preocupado com a movimentação felina. Foi
assim cada vez que trouxemos um novo gato. Eles iam ficando e, quando se via,
já estavam lá. Mas agora não morávamos mais naquela casa, eu e minha irmã, nem
naquela cidade.
O fato é que em casa aquela gata não poderia ficar. Tampouco
poderíamos ignorá-la como se não fosse problema nosso. Sempre é. A gente tem
responsabilidade pelo mundo, embora não tenha controle sobre nada.
(Aqui abro o primeiro parêntese de outro fio, para contar
que minha irmã é a pessoa que deixa de jantar para tentar salvar uma lagartixa.
Posso vê-la compenetrada sentada à mesa, realizando uma cirurgia na pobre da
lagartixa, que fora atacada pelos gatos, e lamentando não existirem instrumentos
próprios: “a linha deveria ser muito mais fina, a agulha também”. Imagino que
nenhuma escola de veterinária tenha jamais previsto tal cirurgia. E acho bonito
que, em algum lugar, exista alguém para quem qualquer vida, por mais pequena,
seja preciosa e digna de ser salva.)
E aqui volto à história da gata, pela qual nos
responsabilizamos porque fomos escolhidas, mesmo que não a tenhamos escolhido.
- Ela precisa ser castrada – resolveu minha irmã, que é
veterinária de animais silvestres e, como ela diz, veterinários de silvestres
acabam pensando como biólogos - ... senão ela vai se reproduzir exponencialmente e, com ela solta por aí, logo teremos
um problema ambiental.
Antes de levá-la a uma clínica, entretanto, minha irmã a
examinou: tinha mamas proeminentes.
- Será que ela está prenha ou que deu à luz recentemente?
Apalpamos sua teta: não tinha leite.
Capítulo 2:
A essa altura, eu estava fora da cidade e só pude acompanhar
o desenrolar dos fatos à distância. Minha irmã me informava através de
mensagens: levara a gata para ser castrada. O funcionário da clínica ficara com
dó e lhe dera comida, fazendo com que sua cirurgia fosse adiada em um dia.
Minha irmã tentara mantê-la em casa durante o pós-operatório, mas a gata não
aceitou ficar presa e desesperou-se para sair. Por onde andaria ela quando não
estava conosco? Voltava sempre, entretanto, para comer e procurar aconchego.
Minha irmã aproveitava suas vindas para cuidar de sua cicatriz.
Enquanto isso, na casa ao lado, eis que Emília, nossa
vizinha, encontra uma gatinha filhote. Como a nossa costuma ser a casa dos
gatos, ela veio perguntar se não tínhamos perdido algum. Não tínhamos. Mas não
parecia ser coincidência surgir aquela filhote logo ali – e tão semelhante à
outra gata que nos aparecera.
A gatinha era pequena, muito. Não como um gato filhote, mas
como um ratinho. Parecia recém-nascida, mas já tinha dentes. Era frágil,
apática. Dormia o dia inteiro e só era esporadicamente acordada por minha irmã
e Emília, que se juntavam para cuidá-la.
( E abro este segundo parêntese para contar sobre o
abacateiro de Emília. Houve um dia em
que lhe perguntei sobre as árvores frutíferas de seu quintal. Foi quando me
contou: “Eu fui comer um abacate e, quando o abri, achei que aquela semente
parecia um feto – eu tenho isso, costumo ver essas imagens, em parte por isso
me tornei vegetariana. - Como não tive coragem de jogar aquela semente fora,
plantei-a no quintal”. Essa é Emília. Alguém que consegue enxergar o mundo sem
divisões. O outro nome disso é amor.)
Nunca houve tanto movimento entre as duas casas da Rua das
Quaresmeiras. Mulheres e gatinhas indo e vindo. As primeiras tentando unir as
segundas. A gata maior (que ainda assim era pequena) não parecia interessada em
assumir a maternidade. E as duas mulheres insistiam. Chegavam a jogar leite
sobre as tetas da gata-mãe, para que a pequenina mamasse.
Voltei de viagem e ainda pude conhecer a gatinha. Sabia que
ela era miúda... mas tanto! Era vida muito frágil que se punha em nossas mãos.
E a mãe nem aí.
- Ainda bem que a castramos. Que mãe desnaturada! – julgamos.
Então, como era inevitável, a gatinha não resistiu. Emília
levantou-se durante a noite para vê-la, e ela já estava cedendo. Amanheceu. Foi
um dia de luto na Rua das Quaresmeiras.
Capítulo 3:
(Este capítulo já começa com um parêntese. Outro fio da
mesma tessitura. É que preciso contar o sonho de Emília, na noite fatídica. A
gatinha já havia morrido. Emília já havia chorado e chorado. Então voltou para
a cama e veio o sonho. Foi assim: Ela ia conferir a gatinha em sua caminha. E,
enquanto cuidava dela, de repente percebeu que não era a mesma filhote que
estava lá, mas outro gato.)
Então aconteceu. Em um outro dia, que já era um novo dia,
eis que aparece um gatinho andando pelo quintal. Ao ser avistada por pessoas,
correu para se esconder dentro de um cano. Era filhote, também. Saudável,
ativo. Emília conseguiu pegá-lo. Levou-o para minha casa e ficamos as duas na
varanda, ligando os pontinhos. Só podia ser irmão da outra gatinha, ambos
filhos da gata adulta, nem tão adulta e nem tão grande. A gente não entendia
como aquele gatinho, que Emília chamou de Tunico, poderia ter sobrevivido.
Até que ela apareceu, a mãe. E foi surpreendente a
serenidade e o modo como tratava a criança: lambia-o, brincava com ele e até o
amamentava. (“Então ela tem leite? Só pode ter leite, senão ele não estaria
vivo!”)
Aos poucos as coisas começavam a fazer sentido. Por isso a rejeição à
gata mais fragilizada. Provavelmente a mãe sabia que ela não tinha chances de
sobreviver e simplesmente abandonou-a, para concentrar suas energias cuidando
do filhote saudável. Por isso também ela era tão esfomeada (comia várias vezes
ao dia, na nossa casa e na casa de Emília). E por isso, sobretudo, o poder: a
forma como conseguia amedrontar Pepita, a cachorrinha de Emília, e os três
gatos da minha casa, tão maiores e mais fortes. Era uma mãe protegendo seu
filho. A maternidade confere poder e coragem extraordinários.
(“É como o caso do caçador” – contou minha irmã. Ela havia
assistido à palestra de um biólogo que, antes, fora caçador. Um dia, encontrou
uma onça com seus filhotes e, decidido a matá-los todos, atirou primeiro em um
deles. Quando a mãe viu seu filhote ser atingido, soltou fogo pelos olhos. Foi
essa a expressão do caçador: ele viu fogo nos olhos. E aquele fogo era tão
forte e tão poderoso, que desde então ele parou de caçar. Tornou-se biólogo.)
Era curioso, agora, desvendar a vidinha secreta daquela
gata. Então ela era mãe. Mãezona. Imaginávamos seus diálogos com Tunico,
orientando-o a se esconder quando aparecessem pessoas. Pois como um filhote tão
brincalhão e ativo pôde passar despercebido por tanto tempo?
Eu evitava me perder em pensamentos sentimentalistas, senão
acabaria desejando o que já desejava: ficar com a gata. Mas eles me vinham – os
tais pensamentos – à cabeça. E às vezes eu os verbalizava: Que aquele devia ser
o dia mais feliz da vida daquela gata. Que ela sentia que, enfim, encontrara um
lar e segurança, para ela e seu filhote. Que ela estava em paz, como nunca
estivera.
E era visível a paz. Às vezes ela simplesmente nos confiava
Tunico e saía para passear. Outras vezes passava tempos lambendo-o, deixando-o
morder seu rabo ou sugar seu peito – com ou sem leite. Quando uma de nós saía
com Tunico no colo, ela esticava o pescoço, a procurá-lo. Quando saíamos de
perto, deixando os dois juntos e sozinhos, ela vinha nos chamar. Queria aquilo:
nós quatro espalhados na varanda. Um lar.
Capítulo 4:
No dia seguinte, Emília apareceu em casa:
- Vizinha, você não acredita no que aconteceu!
Meu coração foi parar na boca.
Ela continuou:
- Acabei resolvendo adotar a gata e seu filhotinho. Arrumei
um quarto para eles lá embaixo e deixei-os dormindo lá. Hoje de manhã cheguei
e, em vez de um, havia quatro filhotinhos!
Me veio à cabeça a voz da minha irmã, na noite anterior: “Se
apareceu mais um, deve haver outros por aí. Uma gata nunca pare apenas dois”.
Quatro! Todos machos, saudáveis, brincalhões. Emília trazia
leite, ração de cachorro, seu pai trazia queijo, carne moída. Virou festa.
- Onde será que eles estavam escondidos? Será que eles
estavam naquele cano?
- Acho que não. Lá mal cabia o Tunico.
Era incrível pensar que aquela mãe cuidara escondido de
quatro filhotes. E que, apenas quando sentiu segurança, carregou um por um à
nova casa. E estava explicado por que ela tivera tanta urgência em sair, quando
passara pela cirurgia de castração: havia gatinhos escondidos em algum lugar
por aí, cuja sobrevivência dependia dela.
- No outro dia eu dei comida para os gatos, – me contou
Emília – a mãe deixou-os comendo e subiu para me pedir mais. Dei um pedaço de
frango para ela. Acredita que ela comeu um pedaço e trouxe o resto para os
pequenos?
Era inacreditável. Era surpreendente. E era, sobretudo,
bonito, ver tanta vida assim.
E de repente ríamos da vida secreta daquela gata, que um dia
ouviu falar na Rua das Quaresmeiras, onde moram os corações mais moles do
lugar. Uma gata que nos escolheu, que nos invadiu, que construiu um lar.
- Hoje sim – concluiu Emília – deve ser o dia mais feliz da vida dela.