quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Quem tem medo do bicho homem?
Eu tenho medo. Eu tenho cansaço. Eu tenho esperança. Depois tenho mais medo. Mais cansaço. Esperança. Exaustão.
E tudo se repete.
E o homem, também, se repete.
E eu tenho mais medo.
Ah, se bastasse não ouvir! Excluir as pessoas de suas redes. De suas vidas. Mas elas existem no mundo. Pior: elas representam as pessoas que existem no mundo. Ah, as pessoas médias! Elas existem e falam.
As pessoas médias não se cansam de falar. Elas disseminam seus discursos de ódio. Elas falam que todos os meninos de rua deveriam ter sido mortos na chacina da candelária, pois deixaram um sobrevivente, e ele matou uma professora no ônibus 174. Elas falam. Elas defendem que pobre é bandido e que bandido tem que morrer. E que direitos humanos o quê. As pessoas médias não querem direitos humanos, querem direitos do consumidor. Querem iphone sem imposto. As pessoas médias acham normal e confortável e seguro que o dono do restaurante expulse o mendigo agarrando-o pelo braço. As pessoas médias se omitem. E o índio continua morrendo. E a história se repete e se repete e se repete. E o bicho homem continua confundindo união com homogeneidade. Hegemonia cultural, racial, econômica. O bicho homem deixa seu igual morrer de fome. O amor, mesquinho, não tem amplitude para se estender além de seus territórios: alguns poucos familiares, amigos, objetos. O bicho homem ama seus objetos.
Mas eu tenho medo do bicho homem. Às vezes eu tenho esperança. Mas eu me canso. Eu fico exausta. Eu silencio.
E isso é só um desabafo.
E um apelo:
Manifestem-se, pessoas extraordinárias! Dancem o amor! Espalhem o amor! Pintem o amor, que está tão difícil de se ver! Falem nele! Gritem-no! Evoquem-no em fogueiras e rituais! Liberem o amor com suas esquizofrenias dos manicômios! Desgarrem-no dos livros das escolas, desordenem-no! Eu preciso das pessoas extraordinárias!
Eu preciso acreditar no bicho homem.
terça-feira, 6 de agosto de 2013
Mais da Alegria
E passei o dia simpática às três senhoras sobre as quais me contou Dona Nazaré: Mimosa, Alegria e Delícia. É claro que, com esses nomes, só podiam ser portuguesas. Uma mulher chamada Delícia não passaria pelo crivo da malícia brasileira. Acho bonita a Inocência. E eis que temos um novo nome.
"A Alegria morreu. A Delícia se mudou. E a Mimosa continua lá". - me contara Dona Nazaré. E eu sofri pela morte da Alegria como se a conhecesse desde sempre.
Mas hoje acordei com uma nova Alegria. Uma história acontecida, que às vezes me volta à mente.
Nathália e Fabrício moram comigo. Um dia ela veio me contar o que ele lhe dissera: "Amanhã vou assistir à sua peça. Vamos eu, Fulano, a namorada de Fulano e a Alegria". Nathália estranhou: "Alegria? É o nome de uma pessoa?" E Fabrício respondeu: "É a minha namorada. É porque ela é a alegria da minha vida!"
- Mas bem que Alegria é um nome bonito! - concluí.
E depois disso pensei tantas vezes sobre como eu gostaria que os nossos nomes de pessoas fossem mais nomes de coisas do mundo. Na língua espanhola é mais comum que palavras corriqueiras e repletas de sentido transformem-se em nomes de gente. Gosto disso. Aqui, há alguns poucos. Os mais populares que consigo me lembrar são Lua e, em bem menor escala, Estrela. Parece que os astros oferecem menos perigo. A gente não quer se misturar. Às vezes a gente ainda disfarça. Letícia. Marina. Pedro. Lúcia. Renato. Beatriz: Alegria. Do mar. Pedra. Luz. Renascido. A que faz feliz.
É tão bonito ser no mundo, por que não sê-lo assumido?
Conheço algumas Jades e algumas Pérolas. Nenhuma Pedra. Conheço uma Selva. Todo mundo pergunta: "Mas é esse o nome dela mesmo?!" E é. E não é qualquer um que tem cacife para assumir um nome forte desses, mas ela tem. Conheço uma Flora. Uma Flor. Uma Rosa. Mas por que não uma Fauna? Uma Raposa? Por que não uma Árvore? Uma Floresta? Um Jardim? Um Rio? Por que não Fogo? Por que não Riso?
Ah, como seria bom contar histórias! Até as fofocas teriam um sabor diferente: "Você não soube? A Chuva largou o Orvalho e fugiu com o Oceano!"
Seria lindo povoar o mundo com mais mundo.
Quem sabe o final fosse mais feliz.
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
Vila da Alegria
Eu já evitava tomar remédios alopáticos por tudo nesse mundo. Mas aí, depois de passar mais de um mês respirando mal e acabar com febre alta no hospital, achei que seria sensato obedecer à médica.
- Mas... por que você me receitou antibiótico?
- É que seu quadro de sinusite já está muito avançado e...
Ainda tentei uma segunda opinião:
- Você acha que tenho mesmo que tomar esses antibióticos que a médica receitou?
- Lian!
Acabei tomando. E antibiótico, uma vez que você começa, tem que tomar até o fim. Programei o alarme do meu despertador para tocar no horário certo, três vezes ao dia. Mantenho ao lado da cama uma fruta para forrar o estômago. Mas ainda assim. Me sinto envenenada. O estômago que dói. Uma tontura que não passa nunca e faz com que eu sinta que corpo e alma estão desconectados. Então eu fico com raiva de ter começado a tomá-los. E sinto que não consigo me concentrar em nada e que tem uma nuvem dentro da minha cabeça e que tudo me parece alheio e que o mundo está muito barulhento.
Então eu tinha acabado de tomar meu mate com pão de queijo e broinhas de milho, como faço todas as manhãs. E voltava para casa entre apressada e furiosa. A comida que não queria parar no corpo. Eu doida por um repouso, para que o estômago se acalmasse e aceitasse o alimento que ali estava. E, se fosse para sair, que ao menos não fosse no meio da rua.
Ao chegar na vila, encontrei Dona Nazaré. Tenho que explicar que, não importa quão apressada ou furiosa você esteja, ao encontrá-la é preciso parar. Dona Nazaré é de outro tempo: do tempo em que se tinha tempo e que as pessoas se falavam e passavam horas na porta de casa vendo a vida passar. Dona Nazaré é do tempo em que se faziam serenatas na janela, e, não por acaso, foi assim que travamos contato. Estávamos tocando e cantando em casa, quando alguém resolveu que deveríamos andar pela vila. Fomos espalhando música de janela em janela. Quando chegamos na casinha amarela, um moço falou: "Vou chamar minha sogra, ela vai adorar." Cantamos para Dona Nazaré. E desde então ela sempre me sorri e me pára para conversar. E eu gosto de pensar que ainda vivo um pouco neste tempo de Dona Nazaré.
Pois hoje, quando voltava da rua, assim furiosa, assim apressada, assim tonta, assim enauseada, eis que a encontrei. E ela me perguntou, pela centésima vez, meu nome:
- Sempre pergunto, mas nunca consigo decorá-lo. Acho que é coisa da idade.
- É que meu nome é diferente mesmo, por isso é difícil de reter.
- Sabe... quem tem nome diferente são as vizinhas da minha irmã. Uma é Mimosa, a outra é Alegria e a outra é Delícia. Todas são portuguesas.
- Que diferente... são irmãs?
- Nada! Uma não tem nada a ver com a outra! A Mimosa mora na casa da frente. Ela é uma costureira famosa. A minha irmã é síndica na vila dela, sabe? A Alegria vivia rindo... A gente dizia que o nome dela só podia ser esse mesmo.
E de repente eu me esqueço da náusea e da dor de estômago e sou transportada para o tempo de Dona Nazaré e para essa outra vila, em que se tem vizinhas portuguesas chamadas Mimosa, Alegria e Delícia. E a Alegria vive rindo. E a Mimosa é costureira famosa e cheia de tecidos vibrantes. E a casa da Delícia, por que não?, deve ter cheiro de pastelzinho de belém e outros quitutes de ovos açúcar e farinha. E elas devem se reunir na porta de casa para rir da vida e, com esses nomes, só podem ser meio gordas. E, sendo meio gordas, só podem ser muito felizes. E ter maridos bem humorados e de bigode. E filhos e netos cheios de açúcar correndo e fazendo barulho, eufóricos por serem mimados em casa de avó.
Volto ao mundo e Dona Nazaré continua me contando das três portuguesas, vizinhas de sua irmã:
- A Alegria morreu. A Delícia se mudou. E a Mimosa continua lá.
Então eu tenho pressa novamente. Preciso chegar em casa e me sentar. Porque estou fraca. Porque estou tomando antibiótico e me sinto envenenada. Então eu me despeço de Dona Nazaré, entro em casa e me atiro ao sofá.
Seguro o vômito e o choro: porque a Alegria, justo a Alegria, morreu.
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