terça-feira, 9 de julho de 2013

O manifesto escatológico

(Parte III de "A Revolução será fofa!")



Xavier não fala em política.

Obviamente ele não é ingênuo para acreditar que exista posicionamento a-político.

Ou reacionário a ponto de desejar a manutenção do status quo.

Xavier é artista. Sabe que a Arte é, em si, transformadora. Política. Ainda que não seja ( e não tem que ser ) panfletária.

Não o objeto artístico convencionado, legitimado, exposto em museus. Mas a relação. A experiência artística, que reside no revirar, expor camadas, abrir espaços vazios. Provocar questionamentos, ainda que não verbais.

A verdadeira experiência artística reside em ampliação, comunhão. Ou seja: Amor. É extremamente político isso. Porque não se encerra em si. Tudo é problema meu, sim, já que sou tudo isso: o mundo.

Xavier é artista performático. Sua expressão é seu corpo, que ele não vende. Xavier rejeita os espetáculos midiáticos, apesar do porte de galã.

Sua tática é deslocar sentidos e usos convencionais. Posar todas as manhãs como esfinge sobre a pia. Depois se atirar à nossa frente na escada, barriga para cima, boca aberta. Provocar estranhamento. Eliminar fronteiras. Então, como um cachorro, ele arfa, com a língua para fora da boca. Depois senta-se de bunda no chão e lambe sua barriga rosada de porquinho. E assim nos lança no incômodo espaço da indefinição.

No outro dia estávamos no quarto. Xavier queria que eu abrisse a porta para ele sair. Mas, diferentemente dos gatos convencionais, que miam seu protesto perante a porta, ele preferiu performar artisticamente em nome de sua causa. Arrastava-se de lado, conseguindo impulso no colchão. Pulava na cama, recomeçava o circuito.

Eu, em meu abuso de poder, entendi o que ele queria, mas a cena era tão divertida, que o mantive lá, para que o espetáculo não terminasse. Sem se alterar, Xavier subiu em minha cama mais uma vez. Posicionou-se sobre minhas roupas.

E fez um cocô-manifesto.

Xavier tem essa arte agressiva. Fétida. Sensorial. Ele dispensa palavras: joga sobre a pilha de roupas limpas o choque da merda. Lança-nos no abismo da falta de sentido. Da escatologia, em seu sentido original. Pois escatologia não se refere necessariamente ao que é nojento, mas ao fim das coisas (por isso o que sai do corpo é escatológico), ao sentido último: Para onde vamos, afinal?

E a verdade é que não sabemos para onde vamos. Mas Xavier segue abrindo espaços vazios, questionamentos. Ele performa o ilógico e acha linda a indefinição. É preciso que haja Arte para que haja transformação. É preciso que não saibamos exatamente aonde vamos chegar. É preciso criar uma forma completamente nova: uma outra linguagem, uma outra visão.

Tem que ser imprevisível, para que seja Revolução.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Gatos de todo o mundo: Uni-vos!

(Parte II de "A Revolução será fofa!")



Jonas sabe que a história é a história da luta de classes.

Quando me aproximo para fazer carinho, ele sai correndo e se posiciona em um lugar seguro, para me observar. Só baixa a guarda raríssimas vezes. Quando ele dorme, por exemplo, sento-me ao lado dele devagarinho e começo a acariciá-lo. Ele gosta do toque ainda inconsciente e, quando desperta, já foi conquistado. Então me afasto, e ele até solta seu miado infantil, para que eu volte a lhe dar carinho. Mas são raras as ocasiões.

Ele tenta manter-se alerta: não quer se deixar ludibriar. Sabe que a mão que alimenta é a mesma que priva, e a mão que acaricia é a mesma que encarcera. São sutis, os mecanismos de dominação.

É preciso que a classe mantenha-se unida. Por isso ele se alinha a Serafim. Mais tarde a Xavier. Tenta cooptar Floffy, que permanece hostil. Floffy não acredita em partidos, associações ou qualquer forma de organização política. Jonas, pelo contrário, defende que a classe só conseguirá que suas reivindicações sejam atendidas se miarem juntos e com pautas bem definidas.

É ele quem lidera o movimento que vai bater à porta do meu quarto quando o prato está vazio. Jonas não quer comida para ele, apenas: quer ração suficiente para todos. Mais ainda: quer presunto, arroz, iogurte. Pois ele não aceita como naturais os privilégios humanos. Jonas luta por condições dignas. Água fresca, por exemplo. Xavier sobe na pia, e eu lhe abro a torneira, deixando cair um filetezinho, que ele bebe satisfeito. Mas Jonas não se deixa corromper: se não for para todos, não serve.

Todos: a classe. Enquanto a divisão de classes existir. E Jonas mantém os olhos e os ouvidos bem abertos, atento para as vozes dissonantes. Ele logo reconheceu uma delas quando trouxemos Ringo, um cachorro carente e estabanado. Ringo, à sua maneira atrapalhada, tentou socializar com os gatos. Jonas foi o primeiro a se opor. No início assustou-se com ele, é verdade, pois Ringo, na sua falta de jeito, tentava se aproximar aos pulos e latidos, ainda que com a melhor das intenções. Depois, mudou de tática, chegando perto delicadamente, com choradinha ansiosa. Mas Jonas manteve-se firme. Não deixaria um cachorro infiltrar-se naquele movimento, por simpático que fosse Ringo: gatos e cachorros mantêm disputas históricas.

Jonas preserva o foco, mas sabe que nenhuma luta tem sentido senão pelo amor. Pela coletividade. Ele gosta de dividir com os seus. Principalmente as alegrias. E a maior delas: as baratas. A caça a esses insetos é o esporte que une todos os gatos. Até Floffy entra na equipe. Jonas vibra, vibra muito. É bonito de se ver. A cumplicidade entre eles, com uma barata em mãos. O barato é quando ela ainda está viva, mas já dominada. Ela tenta se esquivar, Jonas atira-se sobre ela e encara Xavier. Entrega-lhe o inseto. A dádiva. A alegria. Gol.

Mas ele permanece atento. Alerta a cada movimento, felino e humano. Ele sabe como nós, detentores dos meios de produção, podemos restringir a liberdade. Abrir e fechar portas, armários e torneiras. Expulsá-los de cima da cama ou do sofá. Ou simplesmente privá-los de direitos básicos, como ração ou higiene na caixinha de areia. Por isso ele fica de olho quando entro no banheiro e Xavier me acompanha, querendo que lhe abra a torneira. Aviso: "Vou tomar banho, tem certeza de que vai ficar aqui dentro?" Xavier tem certeza. Tranco a porta e, assim que entro debaixo do chuveiro, Jonas começa a miar do lado de fora. Ele me acusa de manter Xavier aprisionado. Faz um escândalo. E imediatamente Xavier, também, começa a miar do lado de dentro. Repito que só poderei abrir a porta ao final do meu banho. Eles não se calam. E eis que a voz popular fala mais alto. Me enrolo na toalha, abro a porta, e os dois saem correndo saltitantes, juntos e cúmplices.

Sem perder a ternura...



quarta-feira, 3 de julho de 2013

A Revolução será fofa!



Semanas atrás, flagrei uma foto de Floffy cheia de espuma entre os dedos, resultado do grande buraco que ela abria no sofá.  Os mais conservadores tacharam-na de vândala e baderneira. Hoje ficou provado: não era. Floffy apenas construía sua casinha, operária que é, com sua garra e o suor de seu trabalho. Pelo direito à moradia.

À la Che, Floffy não perde a ternura jamás. Esfrega-se em nossas pernas e sobe em nosso colo na primeira oportunidade. Aliás, ela sabe reconhecer as oportunidades. Manifesta-se pelas causas que julga importantes, nos momentos mais apropriados. Quando estudo, por exemplo, ela resolve ocupar a mesa e deitar-se exatamente sobre o livro que leio, ou o caderno onde faço anotações. Ela sabe que, para transformar, tem que desorganizar um pouco. Floffy reivindica visibilidade. Às vezes tenho que tirá-la à força. Ela sabe que as forças são desiguais, mas ainda assim não deixa barato: revida com uma patada.

Floffy não se alia às forças repressoras masculinas. A luta é solitária. Jonas e Xavier estão organizados em associação e conquistaram, por isso, o direito de comer primeiro.  Floffy fica com a ração que sobra, mas ainda assim engorda. Gorda e forte, defende seu humilde sofá-casa recém conquistado. Jonas e Xavier rodeiam-no, e ela, com suas patas afiadas, protege seu território.

E protege também seu corpo e seu direito sobre ele. E, sobretudo, não esquece sua história de dominação. Ela traz a viva memória de sua castração, anos atrás. E por isso rejeita Nathália, que a levou para o veterinário, cuidou dela e trocou seus curativos no período, como já fui, também, rejeitada por Jonas pelo mesmo motivo. Na época, eu queria explicar-lhe que era para seu bem. Mas como dizer-lhe isso, se nem eu estava convencida? Era para seu bem ou era para a tranquilidade de nossa casa, com seus móveis e moradores? Era por bem ou por controle? Eu não sabia. A verdade é que levei-o para ser castrado por insistência dos outros habitantes da casa. É que sobre o poder há um outro poder e assim por diante. 

Depois Jonas esqueceu e parou de se esconder ao me ver. Mas Floffy não esquece. Ela sabe que, para que a luta tenha sentido, não pode perder a história de vista. A memória é arma.

Mas Paulo Freire já dizia que, "quando a educação não é libertadora, o oprimido quer ser opressor". Floffy quer. E por isso se alia ao Poder Econômico: nós, os humanos. E adquire alguns privilégios, como dormir na cama quentinha. Sim, ela se alia a nós e se opõe aos outros gatos. Mas sabe bem quem somos e não perde oportunidade de pisar sobre mim durante a noite ou de, sorrateiramente, beber água do meu copo sobre a mesa. 

E, sem que se perceba, Floffy muda a rotina e a geografia da casa. Come flores e vomita suas pétalas pelo chão. Constrói uma casinha no buraco que abre no sofá. Derruba a pilha de livros sobre a cômoda. Ocupa os espaços, todos eles.

A Revolução será fofa!