quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Réquiem ao mundo que acaba. Oração ao mundo que vem.

Réquiem ao mundo que acaba


Eu agradeço o encontro, em primeiro lugar. Cada instante em que consegui intimamente te encontrar. Quando fui Terra. Quando fui atravessada por raízes inúmeras, imensas. Quando fui abrigo, sustento, pilar. Quando fui Fogo. Pela intensidade das paixões. Pelo calor com que consumi a mim e aos outros. Quando fui radiante ou febril. Quando fui solar. Quando fui Água e aceitei o fluxo das coisas passageiras. Quando fui cristalina. Pura. Transparente. Por estar em movimento constante. Pelos escafandristas que me atingiram as profundezas. Quando fui Ar. Quando fui leve. Quando fui imensa e permiti voos de liberdade. Por todas as vezes em que pude ser sem pesar. Pelos que fiz flutuar.

Eu agradeço o encontro, sempre. Eu agradeço pelos sorrisos trocados, pelas risadas compartilhadas, pelos olhares de reciprocidade. Eu agradeço as mãos dadas, os caminhos cruzados. Os irmãos de vida, os de todas as vidas. A irmã de vazio, a de pedra, a preta. Os irmãos de passos, de palavras, de poemas. Os que atravessaram comigo. Os que me atravessaram. Eu agradeço tanto, tanto. E agradeço sempre. As almas tocadas. Os corpos. As vidas.

Eu agradeço pelas viagens. Pelos lugares que tive oportunidade de conhecer. As montanhas nevadas. Os mares de peixes, tubarões, leões marinhos. Eu agradeço os desertos e as multidões. O deslumbre, o estranhamento. Eu agradeço sobretudo as viagens outras. Essas que não pedem deslocamento, mas pelas quais todas as pedras se movem. Eu agradeço diariamente pelo poder da transformação.

Eu agradeço, por fim, os caminhos não escolhidos. Pela beleza das possibilidades.

Assim me despeço desse mundo que acaba. Esperando enterrá-lo em um solo fértil de amor, para que um novo mundo floresça.

Oração ao mundo que vem



Que a partir de agora não se possa falar em mim e falar em mundo. Que as palavras não separem o que foi feito um. Nós. Que sejamos juntos e o saibamos sempre. Nós, novo mundo que vem. Nós. Laços. Menos algemas. Mais abraços. Que a lógica do dinheiro não defina nossos passos. Que o trabalho seja digno e não se sobreponha ao tempo da vadiação. Menos máquina. Mais coração. Nós. Iguais. O mesmo. Homem, outro homem, bicho, planta, pedra. Um só. Que seja. Já é. Mas que saiba. Que sinta. Que tempo não seja dinheiro. Que seja fruição. Que as religiões não sejam regras, normas, berços de intolerância. Que sejam comunhão. Ou nem isso. Que sejamos nosso tempo, nosso templo, nossa religião. Sem interferência de instituição. Que sejamos feitos da matéria do Amor. Não é essa a matéria de Deus? Que sejamos, pois, mais deuses e menos divas. Que sejamos plenos ao comportar vazios. Que possamos entender que uma atitude elevada não é se higienizar de mundo, mas aceitar a lama, mas mergulhar mais fundo.

Que seja mesmo novo. Que venha o novo mundo.

Amém.



terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Mergulhar

Ilustração de Daniel Gnattali

Quando anunciei que ia fazer o curso de mergulho, ele me aconselhou, já sabendo que não gosto de conselhos:

- Lian, não quero ser chato, mas... tente não nadar pra longe do grupo, como você sempre faz.

- Não, não é chato. É só um conselho inútil. Porque, se eu achar necessário, eu vou acompanhar o grupo. Mas, se eu tiver vontade, eu vou nadar sozinha.

Ele riu como se suspirasse. Ou suspirou como se sorrisse, não me lembro.

E lá fui eu, quase sem dormir, pegar um ônibus às cinco da manhã para Arraial do Cabo. As aulas teóricas começariam já às nove. A escola oferecia alojamento e toda a estrutura. Cheguei zonza de sono.Muita teoria. Depois aula de piscina. Os exercícios. Tirar a máscara. Tirar o regulador. Controle de flutuabilidade. Resgate. Depois da piscina, almoço. Depois sala de aula novamente. A essa altura, eu já não existia como pessoa. Cansaço. Muito. Um casal mineiro que não parava de interromper a aula. Eu dormia. Acordava. Tentava raciocinar. As tabelas. Prova teórica. Novamente as tabelas. E de repente uma chuva forte. Cama.

Acordei na manhã seguinte ainda lenta. Um barco e o mar. Mais dois dias assim. O mar. Nada mais, entre dormir e acordar. Eu torcendo para acabarem as tarefas, para poder mergulhar livremente. Um dia, enquanto esperávamos para fazer os exercícios de superfície, resolvi dar uma volta. O mergulho. Eu sempre me perco nos mergulhos. Eu sempre me encontro em outras formas. Essa coisa de entrar na floresta e pensar que sou bicho. Entrar no mar e pensar que sou peixe. Seguir os cardumes. Grandes peixes azuis. Pequenos peixes transparentes. De repente um puxão pelas costas. Alguém me leva para a superfície: "Mergulhando sozinha!"- recebo bronca, ainda que simpática.

O fascínio. "Eu vi um peixe que parece uma borboleta! Gorduchinho no fundo, como um avião. Então ele abre as nadadeiras como leques. E elas brilham nas pontas!" É um coió, me explicam. "Tem um outro que parece uma graviola! Um peixe redondo e inflado, com pontinhas que parecem espinhos!" Ah, um baiacu.

Porcaria de nomes que estragam a poesia.

Eu só quero o mar com seus mistérios.

"Deslocada", é o apelido que recebo de um dos instrutores. Porque, no barco, estou sempre longe dos grupos tagarelas, à procura do infinito. Porque no mar quero seguir sozinha. Mas sozinha não, engana-se ele. Quero seguir com os peixes e os seres. E, quando chega o mais esperado momento, o do mergulho livre, me apontam uma garota. O sistema de duplas. Eu saio na frente e novamente me puxam. Tenho que permanecer com minha dupla, com meu grupo.

Mas vejo uma tartaruga e não posso fazer outra coisa, senão nadar atrás em disparada. O instrutor me persegue, segura minha nadadeira, faz sinal para eu voltar. Mais tarde ele dirá: "Nunca faça isso, de seguir a tartaruga. Ela estava indo muito pro fundo. Logo você poderia ter uma narcose por nitrogênio e nem saberia, continuaria perseguindo a tartaruga." E depois completa: "Puxa, você me cansou!" É que por um momento eu penso ser meu este mundo que não é. Água, na ilusão de iludir, revela tão bem. Essa verdade de que estamos todos juntos. Os continentes unidos por ela.

E por um momento eu me vejo peixe-concha-tartaruga-coral. Tudo isso e tudo junto. Parece outro planeta, o mar. Mas é apenas ele, o mesmo mundo. Um espelho. Só que mais fundo.

"Então, Deslocada, como foi?" - ele pergunta. Eu sorrio, apenas. Deslocada. Talvez seja. Peixe fora d'água. Peixe no barco. Mas por que barco, se existe o mergulho? E por que prédios e carros e regras e ruas... se existe o mar? Por que nomes, se os seres são redondos, brilhantes, borboletas e graviolas?

E vejo meus pensamentos se perderem, boiarem. Toda a lógica transfigurada em peixes coloridos.

Tudo perde o sentido, perante a vastidão do mar.


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

17 de dezembro


Chovia. Talvez todos os outros desistissem, mas eu lhe pedi que subisse comigo assim mesmo. Mesmo que. "Firmes e fortes", ele respondeu. E me ajudou a escalar quando perdi as forças. Carregou minha mochila quando perdi o equilíbrio. Lavou minhas mãos quando eu perdia sangue. E desde então ele escala comigo. Amigo. Inteiro. Eu invento o rumo e me atiro. Ele me acompanha e cuida para que eu não caia no abismo. Aquele. É ele quem me segura no mundo dos homens. Quem me puxa pelo pé quando nado pro lado oposto. Quem me espera ou me alcança quando saio andando no mato, longe de todos. Criamos um grupo de poesia, chamado "Clubinho Lindo". Como somos os únicos membros, ele é o Rei Lindo e eu sou a Rainha Linda. Escrevemos versos. Eu lhe ensino mandarim e me surpreendo com sua facilidade em aprender. Depois interrompo as aulas por falta de tempo. Invento viagens. Fotografo suas árvores, reclamo de seu enquadramento, faço listas enormes. Viajamos por aí com gorro de passarinho e talvez seja isso mesmo. Voar. Ele voa. Eu prefiro os mergulhos. Eu me despedaço. Ele me refaz em aquarela. Fada. Ser da floresta. Circulíris no céu. Ele conta suas histórias e expõe todo seu processo de pensamento. Transparente. Por isso mesmo, muita luz. Atravessado de amor por todos os lados. Ele que, sem olhar pros lados, atravessa a minha vida. Hoje é dele o dia. Que seja doce a travessia.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Carta que eu queria ter mandado por pombo-correio à amiga que não tinha nada a ver com isso tudo...






Ontem, procurando presente para uma amiga que vai fazer aniversário, encontrei um livro de cartas trocadas entre Clarice Lispector e Fernando Sabino. Lembrei tanto de você. Tanto porque tive a impressão de que seriam cartas que nós duas trocaríamos, fôssemos outros. Como esqueci de pedir pro moço da Travessa embrulhar, vim lendo-o no metrô, que peguei na Estação General Osório. Aí o Catete passou e eu deixei o trem ir e voltar, enquanto lia selvagemente as cartas alheias que poderiam não ser.

Mentira. Desci no Catete mesmo, apesar da vontade de continuar lendo no metrô. Mas é desse ponto que nasceu esta carta, que te escrevo agora. Das minhas não-biografias, que, em paralelo, dizem muito mais de mim. Então eu te conto das verdades que não aconteceram, como o dia em que, descendo do metrô, vi dois rapazes passarem com uniformes de futebol, com seus nomes escritos atrás da camisa. Como não lembro os nomes, digamos que um era Ricardo e o outro, Daniel. Chamei um deles pelo nome: "Ricardo! Quanto tempo!" Ele ficou me olhando estarrecido, não fazia ideia de quem eu era. "Você continua lá?" E, quando ele, confuso, perguntou de onde me conhecia, eu disse que era "do curso, ora!" Depois fui embora com ares de intimidade e sumi pra sempre. E ele pra sempre se perguntou quem eu seria, mas mesmo eu quase nunca sei responder.

Em uma das cartas, Clarice lamentava uma crítica de Álvaro Lins a seus livros, dizendo-os mutilados e incompletos. Com desânimo, ela lhe dava razão, concluindo que não se podia fazer arte "só porque se tem um temperamento infeliz e doidinho". E senti que ela me acertou em cheio, apesar de eu não ser bem infeliz. Pensando melhor, talvez exatamente o contrário, pois diariamente a felicidade em mim mal cabe. Mas melancólica sim, quase sempre, também. Aliás, é meu lado melancólico que escreve, pois o feliz só sente, ama e caminha.

Engraçado como, em tempos de internet, melancolia seja quase uma contravenção. Outro dia chovia. Chovia muito e eu tinha dormido pouco. Escrevi um texto melancólico no blog. Aliás, uma carta também. Uma carta direcionada a ninguém em especial e talvez a alguém. Um Ricardo ou Daniel dos caminhos paralelos. Sempre acho que os homens podem ser divididos entre esses dois nomes. Tenho um amigo, chamado Tiago, foi assim que o conheci:

- Seu nome é Daniel de quê?
- Tiago.
- Daniel Tiago?
- Não. Meu nome é Tiago.

Mas, voltando, escrevi então uma carta melancólica. Logo que a postei, minha mãe telefonou desesperada. Queria saber se estava tudo bem. "É só a chuva, mãe!", eu expliquei. É que eu falara em morte. Mas é que eu sempre penso na morte como medida da vida, especialmente quando viajo. O ir embora. Também por isso viajo tanto, como um modo de morrer. Daí vem a vida, maior.

É que sobre alguns assuntos não se fala, estou aprendendo.

Mas Clarice me atingiu em cheio. Será que é possível fazer arte só por ter um temperamento feliz, melancólico e doidinho? Pior. Será que é possível ter a vida que tenho? Ser eu? Eu sinto que sempre me equilibro entre dois lados, mas vai aparecer um terceiro e me desmontar inteira. Uma perdição. Uma salvação. A mesma coisa. Tenho pressentimentos e também alguns planos secretos. Te conto sobre eles pessoalmente.

Vou a Goiânia daqui a alguns dias. Vou a Goiânia e quero te ver. Quanta saudade. Eu sempre te escrevo cartas mentalmente, pois sinto que você vai entender sem susto minha divagações felizes, melancólicas e doidinhas. E as cartas, as concretas, devo tantas a tanta gente. Cansei de escrevê-las quando elas tornaram-se relatórios. Eu não quero falar sobre os fatos, eles estão espalhados por aí. Eu quero falar é da terceira via, esta que vem e que vai destruir tudo que eu conheço.

Estamos a alguns dias do fim do mundo. Eu vou a Goiânia te visitar. E, depois que o mundo acabar, vou pro Pantanal. Vou visitar os índios Terena e depois eu quero virar bicho. A terceira via, talvez.