domingo, 23 de setembro de 2012

Um telefonema não dado



Gosto de um texto do Rubem Alves, em que ele fala sobre as coisas que "não aconteceram, para que aconteçam sempre". Ele referia-se às histórias das lendas, mitologias e religiões. Mas me fez pensar sobre os fatos da minha vida. Eles, os não acontecidos, que se atualizam diariamente em mim. Tudo que não acontece tem vida própria, pois pertence a uma outra dimensão: esse espaço desmesurado das abstrações, que, por ser composto de vazios, comporta amplitudes homéricas do que não foi.

Ontem eu contava a um amigo sobre um desses fatos, um que aconteceu e desencadeou um não-acontecimento, que, ao longo da minha vida, aconteceu sempre em mim. Ou fez acontecer. Coisa assim. Já devem ter se passado dez anos, eu morava em Goiânia, caminhava por um shopping center da cidade. Foi quando o vi passar. Era um homem e era adulto. Não sei precisar a idade, mas "adulto" era a categoria genérica em que cabiam esses muitos e em que até hoje tenho dificuldade para caber.

Ele passou sozinho, de cadeira de rodas, e o que me chamou a atenção foi um papel colado na parte de trás de sua cadeira. No papel, sua data de aniversário e seu telefone, junto à mensagem: "ME LIGUE". Fiquei um tempo olhando, tentando entender. Ao se saber observado, ele virou-se para mim:

- Você está lendo meu cartaz?

- É... do que se trata?

- Todo ano eu passo meu aniversário sozinho. Ninguém me liga, e eu passo o dia chorando. Este ano resolvi tomar uma providência. Anotou o meu número?

- Ainda não... Peraí.

Anotei. E, sob seu pedido de que não o esquecesse, fui embora balançada e cambaleante, como se de súbito perdesse, eu também, a capacidade de andar sobre duas pernas.

Durante dias, segurei aquele papelzinho, onde fizera a anotação. Tirava-o e guardava-o na gaveta. Ficava horas absorta, amassando-o entre os dedos. Em minhas mãos, o mundo: todo o abismo, a solidão e também o poder da alegria. Que fosse breve, que fosse de um dia. Ilusória, alguém diria. Mas não. Pois a efemeridade é substância real, e o sorriso esperançoso de felicidades futuras já é felicidade presente, ainda que tímido. Durante todos aqueles dias eu sabia que tinha o poder do sorriso, mas também o pudor do medo.

Então chegou o dia do aniversário daquele homem. Ele que tivera a coragem dos grandes, a coragem dos solitários. Ele que circulava com desenvoltura em sua cadeira de rodas, escancarando sua solidão. Mas eu precisava de duas pernas, de dois pilares, de duas pedras que me protegessem do abismo. O meu e o alheio. Pois a miséria alheia é sempre nossa também. Eu tive medo de abrir portas.

Hesitei o dia inteiro entre pegar e não pegar o telefone. Até que o dia acabou.

O telefonema não dado. Ele ainda vive em mim. Ele toca, às vezes. Eu o atendo e dialogo com ele. Nós nos perdoamos porque somos humanos e abstratos. Temos longas conversas e atualizamos as possibilidades de alegria. Às vezes eu tento de outras formas, por outros meios, através de outras pessoas, telefonar para aquele homem. Talvez um sorriso reverbere no outro. Talvez.

Eu sei que tudo volta, mesmo o não sido. O que "não aconteceu nunca para que acontecesse sempre". É um toque de telefone que me chama, que me acorda diariamente para o mundo. E que, por não ter acontecido, cai no rol dos meus mitos, minhas lendas pessoais. Essa narrativa que me dá sentido e que se repete sempre, ampliando meus vazios.


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Amar e mudar as coisas


Há alguns dias minha amiga Júlia postou um texto em seu blog (http://juliaemexcesso.blogspot.com.br) sobre suas reflexões a partir de músicas do Belchior. Li-o saudosa de tantas coisas: das longas conversas em que refletíamos sobre a vida; das músicas do Belchior que eu tanto ouvi, algumas das quais já nem me lembrava; dos seus shows aonde íamos juntas, antes de ele desaparecer pelo Uruguai.

Relembrando suas velhas canções, um trecho permaneceu em minha cabeça: "Amar e mudar as coisas me interessa mais". Já discutimos tanto a essência, a existência e o fenômeno, para chegar até aqui. Talvez seja este meu atual tema de vida: "amar e mudar as coisas", depois de a linguagem ter falhado e de a filosofia nunca ter respondido às minhas questões primeiras. Hoje é o simples do amor e suas perguntas que me interessa mais.

Em uma rodoviária na Bolívia, quando eu dava dinheiro a uma velhinha, meu companheiro questionou: "Por que você fica dando esmolas, se no Brasil você não dá?". Ele tinha razão, quase não dou esmolas por aqui, o que se deve, em parte, pela consciência da minha incapacidade de assim transformar qualquer coisa. Respondi que não dou esmolas, mas que, quando dá na telha, eu dou. O que também é verdade.

E meu dar na telha é sempre assim arbitrário. Um capricho, quase. Tenho essa aversão a pedir, como tenho a que me peçam. Nasci para o mundo de graça e assim passei a esperar que as coisas fossem sempre. É dessa forma que me posicionei na vida: "quando me dá na telha" é o único quando que sei proceder. E é assim, também, que às vezes egoisticamente dou esmolas. Quase nunca quando me pedem.

Pois dois dias atrás eu caminhava para o mercado e cruzei com um mendigo que dormia sobre a calçada. E me "deu na telha" fazê-lo sorrir. Já no mercado, separei uma sacola de compras para ele, com comidinhas e suco de frutas. Meu plano era deixar ao seu lado, para que ele encontrasse o pacote ao acordar. Mas, quando passei por ele novamente, ele já abria os olhos e pedia dinheiro aos passantes, ainda deitado. Uma senhora entregou-lhe alguma coisa, enquanto eu parei ao seu lado. Dei-lhe "boa tarde" e entreguei, eu também, as compras que tinha feito. Ele abriu um sorriso lindo e levantou os braços, mais num gesto de alegria incontida do que de louvor, dizendo: "Está vendo como deus é justo?". Saí sorridente de seu sorriso. Naquela tarde havia me dado na telha sorrir alguém para me alegrar. Aquilo não transformava nada da realidade do mundo, senão o meu dia.

"Amar e mudar as coisas..."

Então me dei conta de que talvez eu nunca possa mudar as coisas.

Mas posso ainda amar e fazer sorrir e me alegrar com a gratuidade do amor. 

Amar e amar e amar. Me interessa mais.