Parece mais complexo do que é, esta coisa de andar com fé. E é sempre tão simples.
Desde sempre me perguntam: "Você não tem medo?" De subir no muro, de fazer intercâmbio, de mudar de cidade, de viajar sozinha, de ser assaltada, de brincar com onça, de comer na rua.
E, quando respondo que tenho anjos da guarda e que nada de mal me acontece, olham-me com cara de "espere até alguma coisa acontecer com você!" Mas eu não espero, eu continuo me lançando e sorvendo.
Ontem eu e um amigo tiramos o dia para visitar o Complexo do Alemão. Paramos no ponto, na Lapa, e perguntamos que ônibus deveríamos pegar. "Vocês vão ao Complexo do Alemão?!! Não façam isso, lá é muito perigoso!" - as pessoas do ponto se mobilizavam para nos alertar. Entreolhamo-nos e ficamos a esperar o ônibus. Temos isso em comum: os pés descalços e a confiança de que o mundo é nosso semelhante. Por isso fomos.
Descemos em Bonsucesso, onde há um teleférico imenso, inaugurado alguns meses depois da pacificação da favela. A passagem custa um real e o passeio proporciona a emoção de se flutuar sobre aquela infinitude de barracos, com direito a nuvens, mar e Igreja da Penha. Descemos em uma das últimas estações e nos pusemos a caminhar nas ruas estreitas de casas empilhadas, subindo e descendo ladeiras.
Logo no início da caminhada, um garoto começou a nos fazer perguntas, curioso. Daniel, seu nome. Começamos a conversar e, quando vi que ele continuava nos seguindo, nomeei-o nosso guia. Ele aceitou a função, orgulhoso, e disse que nos levaria a conhecer o campo e a árvore. No caminho, parávamos para conversar com as pessoas sentadas nas ruas, que sempre nos sorriam e cumprimentavam. Um senhor me mostrou seu dente, o último que tinha na boca, explicando que às três da tarde Fulana iria à sua casa arrancá-lo. Perguntei se ele tinha medo da dor, ele respondeu que era tranquilo, pois o dente já estava mole mesmo. Dócil como as crianças que trocam a dentição.
E fomos subindo e descendo ladeira, parando de vez em quando para trocar gentilezas com as pessoas que encontrávamos. No nosso cotidiano burguês, usamos o termo "gentileza" para nos referirmos a palavras e gestos elogiosos ou de superficial delicadeza. Naquele contexto, entretanto, ser gentil era uma abertura que... como explicar? Uma alegria do encontro. Um reconhecimento.
A certa altura, Daniel nos apontou uma árvore: um pé de fruta-do-conde. Meus olhos brilharam. Ele foi trepando nos galhos e eu fui atrás. "Essa está boa, Daniel?" "Não, esta está verde." "Mas como faço pra diferenciar?" "Sente o cheiro!" Abrimos uma fruta e compartilhamos, nós três. Daniel mal queria comer, queria subir na árvore e nos presentear com seus frutos doces, doces. "Já chega, a gente nem consegue comer tanto, Daniel, desce daí!"
Então apareceu Dona Rosália, da casa em frente, dizendo que queria tirar foto conosco. Logo estávamos no quintal de sua casa, sendo apresentados a todos os pés de fruta: o limoeiro, o abacateiro, a goiabeira. Sua filha carregava um neném pretinho, de lindos lábios carnudos, que batia palmas e sorria, sempre que cantávamos "parabéns pra você". Sua nora carregava também um bebê, na barriga. "Você está grávida de quanto tempo?" "Três meses." "Já sabe o sexo?" "Acho que é menino, pois ele mexe muito." "E o nome?" "Lucas." "E se for menina?" "Acho que é menino mesmo". Dona Rosália saiu, sob nossos apelos, para comprar guaraná para nos servir. Ela sente falta de São Paulo, onde vive sua família, e diz que voltará, em nome de Jesus. Ela nos mostra sua casinha sem pintura, diz que quer arrumá-la, colocar uma televisão grande e uma mesa em um cômodo em que mal cabe uma pessoa. Mostra o quadro pintado por seu filho, seu retrato dentro da bíblia e leva-nos para apreciar a vista da laje. Diz que faz faxina em casa de madame e em hospital, mas no momento está desempregada. Se eu souber de alguma coisa... Anoto seu número e sigo, seguimos. A essa altura já perdemos nosso guia, Daniel, nesse mundo imenso de ladeiras e barracos.
Mas encontramos duas meninas sorridentes, eu me sento ao lado delas, meu amigo fotografa. "Vai pro jornal? Vai aparecer na tv?" Ficamos conversando, três meninas. "Sua chapinha não sai com esse calor?" "Eu não estou de chapinha, meu cabelo é assim." "Caraaacaaaa!!!!! Olha o cabelo dela!!" Elas fazem uma festa. Justifico explicando que sou chinesa. Por algum motivo, uma delas começa a me contar que lá muitas meninas engravidam cedo: "Tenho uma amiga de 12 anos que teve gêmeos". Pergunto suas idades, uma tem 12, a outra tem 10. Despeço-me dizendo-lhes que não engravidem tão logo.
Encontramos um campinho, onde meu amigo tira os chinelos e se joga a uma partida de pelada, com os moleques, todos igualmente descalços e contentes, indiferentes aos policiais armados da UPP. Muitas escadas. Subidas e descidas, vamos escolhendo os trajetos. Num beco, um grupo de crianças pequenas brincando, os adultos a um canto. Meu amigo começa a fotografar, elas dão risadinhas envergonhadas. Os pais apontam: "Olha, ele está tirando foto do garoto!", orgulhosos. Uma menininha se aproxima de mim. Agacho-me e ela se aproxima muito, quase me abraça. "Ana Clara, seu nome? Que cabelo lindo!" Ela diz que sua tia da creche fez seu penteado. As outras crianças me rodeiam, mexem no meu cabelo e eu peço-lhes que façam um penteado bem bonito. Estamos absorvidos pela presença uns dos outros. Meu amigo me chama para seguir, saio saltitando, acenando com as mãos e gritando "tchau", com a criançada toda saltitando atrás de mim, no mesmo gesto, "tchau!" "tchau!" "tchau!"... Viro-me novamente, agacho-me e abro os braços. E de repente estou rodeada de crianças, em um grande bolo, até desequilibrarmos e cairmos no chão e ficarmos assim deitados dando risada, nessa súbita percepção de quão grandes somos, nós e o universo.
Ali as crianças ainda brincam nas ruas sem medo. Os vizinhos se conhecem e se cuidam reciprocamente. Ali as pessoas têm rosto e nome. São humanas, são gente, são pessoas. E não estão separadas pelo abismo do dinheiro.
Nunca me senti tão em casa no Rio de Janeiro, como nesse lugar a que tantos me aconselharam a não visitar. Nunca me senti tão humana, tão puramente humana, despida dos excessos de identidade que nunca me definiram.
Nunca me senti tão definitivamente inseparável dos outros que também são humanos e tudo e toda essa sopa de mundo que compomos.
Gente não tem que ter medo de gente, confirmei ali, no Complexo do Alemão.
Parece complexo. Mas é tão simples...