Eu estava na cama, quando ouvi minha mãe chamando:
- Lian, você está dormindo?
Estava.
- Você voltou tarde ontem?
Voltara.
Ela então parou na porta do meu quarto e anunciou que uma senhora, amiga da família, havia falecido, e perguntou se eu ficaria dormindo ou iria com meus pais ao enterro. É claro que eu ficaria dormindo.
Eu fora a um enterro na vida: o do meu avô, quando eu era criança muito pequena ainda. Depois disso, a cada vez que as situações me convidavam ao cemitério, eu me trancava no quarto. Era minha forma mimada de dizer que eu não sou conivente com a morte. Não, eu não a deixo se aproximar.
Mas aí, já acordada, fiquei rolando na cama, a pensar que talvez fosse hora de crescer. "Desculpem, mas se morre", Clarice joga em minha cara. E eu viro o rosto de lado e respondo, mãos na cintura: "Não, não se morre!" E quase mostro a língua.
Foi, pois, ali, deitada na cama, que minha criança pariu uma adulta. E se puseram a conversar. Era preciso que a adulta puxasse a criança pela mão. "Mas se existe amor..." Eu nunca entendi como amor e morte podem existir em uma mesma realidade. Eu não entendo. Nem minha adulta entendia, mas era preciso coragem para pisar no azulejo e dar um primeiro passo no mundo. Demos. Nós três, de mãos dadas. A velha criança, a adulta recém-parida e esse ser desconhecido que está no meio disso tudo.
Sim, a minha adulta levou a criança ao cemitério e me mostrou: "Está vendo que se morre?" Eu olhava as outras crianças no velório, levadas pelos pais. Elas aproximavam-se do caixão, curiosas. Nós, crianças, boquiabertas de espanto.
É que sou muito pequena. Não sei entender a finitude. Não sei me proteger da dor dos vivos sem me transbordar toda de dor, também. É que sou pequena. Preciso que me garantam que os meus serão sempre vivos, porque não sou mais do que são. É porque sou tão pequena, não apaguem as luzes. Tenho medo da escuridão.