domingo, 25 de setembro de 2011

O Vazio


Hoje ele amanheceu anunciando que ainda havia o Vazio.

Depois de tanta gente, cerveja, picanha, costela, lombinho, abacaxi, caipirinha em copo gigante e eternos infinitos para uma noite. Tínhamos um churrasqueiro conhecedor profundo dos segredos da carne e da alma. E, quando perguntávamos sobre os cortes e as receitas, ele explicava que isto era felicidade, isto era vida, e falava sobre a adolescência da brasa.

Hoje acordei tarde com o movimento das pessoas debandando. Dos poucos que ficaram, um deles anunciou: Sobrou o Vazio.

Explicaram-me que Vazio era um corte de carne. Mas eu achei bonito isso, alimentar-se do Vazio.

Então eu preguiçosamente espero o almoço ficar pronto, enquanto escuto a movimentação na cozinha.

Como se atinge o ponto do Vazio? Eu não sei. Assim como não entendo as receitas da felicidade e da vida. Também a adolescência em brasa tanto me confundiu que me envelheceu. Não, eu não sei os segredos da carne. Os da alma, sei menos ainda.

Mas, com gratidão, aceito o domingo e seu Vazio.


quinta-feira, 22 de setembro de 2011

23 de setembro


Antes de mim, já havia ela. Foi ela quem embaralhou o mundo inteiro para aguardar minha vinda. Quem chega com a primavera não pode ser simplória. Não ela. Que me abria o mundo com seu olhar afiado, desafiando o senso comum, as pessoas comuns, as coisas comuns. Comum? Não ela.

Ela que criava brincadeiras trágicas, que matava a Barbie das mais diversas maneiras, que levava cavalos para a garagem do prédio. Ela que pintava carrapatos e quadros belos e intrigantes. Que escrevia poesia desde muito cedo. Que me contava o destino dos poetas, uns reais, outros inventados, e abria feridas que para sempre doíam.

Ela que, ainda na infância, pedia que nossa mãe lhe comprasse livros sobre mutações genéticas. E vinha me mostrar, fascinada, fotografias de pessoas deformadas, cheias de bolhas, que eu me recusava a ver. Ela que nunca fechou os olhos para o fundo do fundo das coisas.

Ela que se deixava transbordar de mundo, que se se deixava cortar na carne pela arte e pelo amor. Em sua forma usual e na forma avessa. Que chorava aos soluços com as músicas na vitrola. Que se indignava com os livros de infância e o bonequinho doce fugindo.

Ela que me assustava com histórias sobre as bonecas. Que, em vez de "boa noite", dizia "cuidado", antes de apagar a luz. Que me chamava para dormir com ela e, no meio da noite, me expulsava da cama.

Foi ela que, num 23 de setembro, trouxe a primavera. Para que, quando eu chegasse, eu tivesse essa delicadeza, não do que é suave, mas de quem enxerga o entre-espaço milimétrico entre dois tons. A vida de dentro da vida que não se vê.

O cachorrinho da Barbie sempre morria. Sempre morria. Eu não sabia. Mas estava vendo vida nascer.

Prateada


Não há uma molécula de mim que não seja exatamente eu. Engraçado pensar isso em uma circunstância dessas. O cérebro querendo pular para fora do crânio. Há três dias. Dói pacas. É assim que ele reage após uma semana acordado, trabalhando dia e noite. Mas essa também não sou eu? Essa que, ao ser pressionada, se joga contra as paredes, tentando escapar?

E de repente aqui me encontro, aprisionada entre a cama e o sofá. Às vezes, em um esforço sobre-humano, vou ao mercado, à farmácia. Ontem fui ao parque, queria ler meu livro sob uma árvore. Na volta, doía tudo. Mas ainda assim eu gosto de olhar as pessoas e sua eterna novidade. Aqui na Rua do Catete tem um novo garoto prateado. Ele é engraçado, porque definitivamente não nasceu para ser prateado. Tem gente que nasce, sim. Não é o caso. Outro dia o vi andando bêbado, cambaleante. Então menino prateado também fica bêbado?

Cena mais bonita eu vi ontem, na mesma rua. Mendigo andando, jovem e negro, um pé descalço, outro com uma meia. A calça amarrada na cintura, para não cair. Ele passa e joga uma moeda para a velhinha, sentada na calçada. Mendigo dá esmola para outro mendigo? E eu, que quase não dou. Outro dia, voltando de Niterói, tive vontade de dar dois reais a um velhinho na Praça XV. Ele sorriu e agradeceu tanto, que me senti quase egoísta, sabendo que dar aos outros é um bem que faço pra mim.

Esta noite sonhei que um bando me perseguia, enquanto eu fugia a cavalo. Passei na frente do meu prédio de infância, gritando por ajuda. Lá, recusaram-se a me ajudar, não por má vontade, mas porque era meu dever me virar sozinha. Acordei com crise de tosse, cabeça pesada. Lembrei de quando passei mal naquele barco, na Austrália, rumo à Barreira de Corais. Eu esperava que alguém tirasse da cartola uma solução. Que alguém me dissesse o que fazer, me entregasse um comprimido mágico, qualquer coisa. E me dei conta disso: É problema meu. É meu dever aguentar.

E, com o corpo dolorido, a garganta queimando e a cabeça explodindo, eu aguento. Eu não só aguento. Eu sou feliz. É esse meu trunfo e minha vingança. E, mesmo que nenhuma outra pessoa no mundo seja responsável por mim, e que ser feliz seja meu problema e meu dever, é a todas as pessoas que eu devo isso: essa súbita crença que eu tenho no homem. É porque eu olho ao redor e vejo pessoas generosas, prateadas e poetas.

E de repente a dor que eu sinto não filtra a beleza do mundo.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Diálogo tepeêmico


Eu e Leilane acampadas na sala, vibe "Into the wild". Eu desabafo:

- Eu estava pensando seriamente em virar mendiga, mas existem alguns empecilhos.

- Como assim, virar mendiga?

- É, virar mendiga. Mas tenho pensado aonde posso ir sem correr o risco de ser estuprada. Ser mulher é f.

- É, é tão mais difícil ser mulher!

- Homem pode ir a qualquer lugar, fazer o que quiser. Se não tem dinheiro, não tem com que se preocupar. Mulher não.

- Mas, Lian, não é muito melhor virar hippie?

- Não, não quero ser hippie. Quero ser mendiga.

- Pensa bem, você pode ir morar em uma comunidade hippie, plantar, fazer artesanatos. Como mendiga, você fica presa à cidade.

- Boa ideia, posso ser mendiga no campo.

- Isso não é mendiga, é hippie.

- É índia. Posso fazer algo do tipo "Comer, rezar, amar", mas na variação "mendiga, hippie, índia". Eu gostaria de ser índia, mas acho que não posso assim, sem uma... permissão.

- A-hã. Você vai até a Funai e diz que quer uma permissão para ser índia?

- Deve ser permitido só para antropólogos, essas coisas.

- Acho que se você for a uma aldeia de verdade, tipo, na Amazônia, eles te aceitam.

- Eu já tenho cara de índia. Posso chegar e dizer "voltei, vocês pensaram que eu estava morta, mas estou aqui". Alguma criança deve ter morrido anos atrás, né?

- É, mas o que eles fazem? Eles enterram? Como você vai explicar que saiu de baixo da terra?

- Eu digo que me acidentei, perdi a memória, sei lá. Mas em vez de Amazônia acho mais fácil chegar ao Pantanal, que é mais perto.

- E como você pretende chegar ao Pantanal?

- De carona, ué. O problema é não ser estuprada no caminho.

- Nesse caso, Pantanal, Amazônia, é tudo a mesma coisa.

- É um problema isso... Por que não existem muitas mulheres caminhoneiras?

- Exatamente por isso.

- Com mulheres caminhoneiras nós poderíamos pegar carona sem medo.

- Mas elas também têm medo, porque têm que passar muito tempo na estrada sozinhas. Mas dá pra pegar carona com casal, é seguro.

- É, mas casal não dá carona. Eu viajando em casal não daria carona, pois gosto de privacidade.

- Casais mais velhos, talvez.

- Talvez eles me dessem carona se eu não fosse mendiga. Mas eu quero ser mendiga. Você colocaria em seu carro uma mendiga fedendo?

- Urgh, não. Mas tem que feder? Você não pode tomar banho?

- Não. Tem que feder. A ideia é estar do outro lado, entendeu? O outro lado... Sei que não é fácil. Sou dependente de algumas coisas. Tipo... pílula, papel higiênico.

- Está vendo? Até nisso é mais fácil ser homem.

- É... droga... Pena que o Brasil não é o melhor lugar pra ser mendiga. Acho que em países mais seguros...

- Você não queria viajar? Por que não vai ser mendiga em outro lugar?

- Ainda quero viajar muito. Por isso não posso virar mendiga em outro país, não quero ter problemas com vistos, passaportes.

- Você pode ir pra um país da América Latina.

- É mesmo. Existe algum país bem seguro, onde haja menos chance de estupro?

- O Uruguai! Dizem que lá é bem seguro.

- Mesmo? Que bom... vou pesquisar esse assunto.

- Deixa eu ver aqui... (ela entra na internet) Hum... taxas de estupro... Não estou encontrando muitas informações.

- Aposto que eles não têm muitos sites para orientar mendigos.

- Você tem razão, não têm.

- Já sei! Vamos criar um blog - guia para mendigos? É uma deficiência da internet, não ter esse tipo de informação.

- Você pode publicar um livro.

- Sim, um guia para mendigos! Mas será que é possível comprar/vender essa ideia?

- O problema é que ninguém levaria a sério. Teria que ser um livro de comédia. Você conseguiria escrever isso como comédia?

- Veja bem, eu estou até agora falando super sério, mas você vai ter que concordar que nossa conversa é cômica. Difícil vai ser convencer os outros da nossa seriedade.

- É...

- E voltamos ao ponto inicial. Ser mendiga sem ser estuprada. Acho que só se eu chegar bem feia... Não, acho que mesmo assim não impediria... Acho que só aquelas mulheres bem loucas, mas muito loucas mesmo, do tipo que as pessoas têm medo de chegar perto...

- Mas você não é tão louca assim.

- Não, não sou. E mesmo que algumas pessoas tenham medo de mim, acho que o estuprador não terá.

- É, ele definitivamente não vai falar "essa não, porque ela tem cara de brava".

- Eu até pensei se... Não.

- Não o quê? Ser estuprada? Não!

- Sabe... fiquei pensando em qual era o limite. Ficar sem dinheiro seria bom, porque sou muito orgulhosa, não sei pedir ajuda. E não tendo dinheiro eu teria que aprender a pedir. Passar mal, pra mim é um problema grande, não sei passar mal. Ser estuprada... Será que eu aprenderia com isso ou me traria sequelas eternas, traumas irreversíveis? Não. Não.

- Não.

- É. Não. Temos que pensar em um plano de ser mendiga sem esse risco. Porque eu quero voltar, sabe? E eu quero voltar viva e quero ficar bem. Mas meus pais vão me matar, quando eu voltar.

- Se você voltar rápido sim. Mas se você fugir por muito tempo, eles vão ficar tão felizes com a sua volta...

- Vejamos... acho que leva um mês para eles perceberem que eu sumi.

- Um mês? Você acha que leva isso tudo?

- Sim, porque umas duas semanas é normal eu não dar notícias. Do tempo de meus pais me procurarem, minha demora para responder, eles sabem que sou desatenta mesmo... acho que começariam a estranhar depois de um mês.

- Mas os meninos que moram com você não perceberiam?

- Não, ninguém sabe de nada. Eu poderia estar em qualquer lugar, em Goiânia, no Rio. Eu sempre fui acostumada a não dar satisfação para ninguém. Só teria que deixar um bilhete avisando, em algum lugar, para minha mãe continuar depositando o dinheiro do meu aluguel. Até porque fazer a mudança e depois fugir não seria fácil. Mas meus pais realmente vão ficar bravos quando eu voltar. O que é um problema, pois faço questão de voltar viva.

- Mas acho que eles vão ficar tão felizes com a sua volta, que nem vão estar bravos.

- Vão sim. A não ser que eu volte bem debilitada. É até bom, porque preciso mesmo emagrecer.

Sim, tivemos mesmo esta conversa, entre risadas e lágrimas, em uma tarde quente e tepeêmica.

- Agora deixe-me ir, porque tenho algumas coisas pra fazer ainda. Preciso terminar um desenho que comecei, ajudar a fazer o perfil da Karine e criar nosso site para mendigos.

E fui.

domingo, 4 de setembro de 2011

Desaba(fa)r sobre todas as coisas


Acabei de lembrar que é o dia. Hoje é o dia. E de repente as coisas começam a fazer um pouquinho mais de sentido.

Amanhã completo uma semana de volta ao Rio. Desde então tem doído. Literalmente.

Cheguei cheia de malas e com duas opções. A primeira era sentar no chão e chorar. Fiquei com a segunda: fui organizar a vida. Desfiz as malas, lavei roupas, fiz compras, cozinhei. No final do dia meu braço doía tanto, que eu não conseguia movê-lo. Levantei no meio da madrugada, chorando desesperada de dor e impotência. Algum tempo depois escutei um barulho na cozinha. Era o Nel, com insônia. Ele me deu um analgésico e voltei a dormir. Tenho certeza de que atendeu ao meu chamado. Eu acredito em anjos da guarda.

Eu vim com um medo, com um plano e com uma saudade. O medo era estar. Que ninguém se engane, eu não estou voltando para casa. Estou começando do zero, com toda uma vida nova para criar. E, por mais que eu lamente as despedidas e o efêmero, eu sou melhor em partir do que em ficar. Eu sei melhor chegar quando sei que é breve. Eu me apaixonei pelo Rio antes de ir embora e principalmente quando cogitei não voltar.

Aqui estou. Mas não voltei.

Bom tem sido encontrar os amigos, que me reconhecem mesmo quando eu não. Que escutam meus planos, mesmo que a cada dia eu faça um plano diferente. Que me ouvem falar da tristeza sem me acusar de egoísmo. Pois não é isso, a tristeza?

Eles me perguntam e eu diariamente tento explicar que sim, é possível estar com um amigo em Bali e não irmos juntos pra cama. Ou melhor, é possível ir juntos pra cama e só dormir. É possível, sim, a presença ao lado. A amizade. E, porque é amizade, então é amor verdadeiro. De deixar buraco grande.

Um dia eu inventei que não sou o tipo que sente saudades. Não sei com que cara de pau sustentei essa mentira, mas o fato é que acreditei nela durante muito tempo. Então agora é a mim que explico: é possível, sim, esta dor.

Um dia ele achou que as palavras existentes não bastavam para descrever a sensação de deslumbramento. Aquilo era... maravilhoso? Não, era muito mais. Incrível, fantástico, perfeito? O que dizer quando o imenso da vida transcende seu nome? Então ele disse: BALI. Esta era a definição do inefável.

Hoje nós chamamos, um ao outro, de "my bali". A amizade é um amor tão simples que não ousamos tocar em seu nome. "My bali" é a nossa maneira de falar de amor.

Eu vim ao Rio sem voltar. Vim sem saber o que fazer dos sonhos, dos planos de fuga, da fuga dos planos. Mas com essa vaga ideia de transformação. De fabricar, da matéria que sou, amor, arte, liberdade. A maneira mais concreta que encontrei foi doação. Eu vim em crise com as gordurinhas extras adquiridas na viagem. A crise dos 50. Meus primeiros cinquenta quilos, que me pesaram como toneladas de complexos. Mas também a primeira vez em que tive peso para doar sangue. E vi meu sangue fluir para dar continuidade a processo de vida. Também é possível, então. Vida. Da matéria que sou. Isso é bali!

Eu viajei há dois meses, aos vinte e nove anos. Agora não sei que idade tenho. Dói tudo. A dor no braço, que pensei ser tendinite. A do buraco em aberto. A dor nas pernas, de tanto pedalar, tentando alcançar, de bicicleta, a cidade maravilhosa.

Hoje acordei escutando Eddie Vedder. Liberdade. Olhei para as quatro paredes e quis chorar.

Então me lembrei que é o dia, hoje é o dia exato da tpm.

Talvez eu não esteja tão triste assim.