quarta-feira, 27 de junho de 2012

Caminhos


Eu tenho uma teoria.

Várias, é verdade. A dos três estômagos, a da fetichização da velocidade, a do nível de sobremesidade das coisas e algumas outras, diante das quais uma grande amiga costuma dizer: "O pior é que a Lian é louca mas tem razão". Mas, entre as tantas, tenho uma que me é especialmente cara e que levo especialmente a sério. É que ela me diz quem sou e a que venho, mesmo que seja invenção. Não são inventadas as verdades? E não são verdadeiras as criações?

Pois bem, eu tenho uma teoria. Começa assim: O objetivo do ser humano é atingir a comunhão. Isso eu inventei, a partir da minha única amostragem: eu. Se meu objetivo fosse ganhar na loteria, por exemplo, eu igualmente poderia ampliá-lo e dizer que é este o objetivo da humanidade. Não é. O objetivo do homem é atingir a comunhão, repito. É este meu pressuposto básico, que fundamenta toda minha teoria. Vejam como ela é frágil, sustentada que está sobre um pilar de névoa:  a convicção esvoaçante de uma menina de chinelos.

Comunhão: o saber-se maior do que os limites do próprio corpo. O saber-se tudo. O saber-se mundo. Ser todaparte-todotempo.

Se comunhão é o fim, são três os caminhos: Amor, Arte, Religiosidade.


O Amor de que falo não é específico. Tanto pode ser o de um relacionamento amoroso, quanto o de amigos ou até estranhos, até o amor não-direcionado, que se volta ao universo. O eu no outro, que, através do Amor, não se encerra em si. 


Ao falar de Arte, falo da experiência artística: o transcender. O contato pelo qual nos expandimos. O desvelamento desse além que não sabíamos dentro. O outro no eu.


Quanto à Religiosidade, refiro-me a essa busca espiritual que nos é inerente, não às religiões institucionalizadas, embora não as exclua completamente.


Portanto, como três caminhos para um mesmo fim, concluo, em minha teoria, que Amor, Arte e Religiosidade são, em última instância, a mesma coisa: essa busca pela transcendência que seria a comunhão. O eu fazer parte de tudo, e o tudo ser uma coisa só. Temos, pois, o fim e três caminhos. Porém este fim nunca é atingido plenamente. Ele é vislumbrado, visitado. É este ser escorregadio que nos escapa sempre que o agarramos. Mais: supomo-los pleno. Mas não contamos que a plenitude é repleta de vazio. É este o segredo. Procuramos o Amor (a Arte, a Religiosidade) esperando que ele nos preencha. E surpreendentemente ele, quando acontece, nos esvazia. Apenas vazios podemos ser plenos de Universo. É preciso que sejamos pequeníssimos para que possamos experimentar a infinita grandeza. 


O caminho é vasto. O amor é vasto. E se saber amando é de magnitude extrema. Olhar algo ou alguém e se pegar espantado por ele existir fora de você, tão intrinsecamente feitos são da mesma matéria. A beleza que lhe fala profundamente. Isso é Arte. Isso é profundamente religioso. 


Eu pensava que mágica pertencia a um outro plano. Só depois descobri que, ao contrário, mágica é aquilo que está firmemente enraizado no que somos, de modo tão amplo que nos escapa. Fazer mágica é conectar.  O verdadeiro contato faz brilhar. São três os caminhos. E eles se entrelaçam de tal maneira que, ao experimentar qualquer um deles, nunca estaremos certos de qual seguimos. É tudo uma coisa só. De Amor fomos feitos. Somos caminho. 




quarta-feira, 20 de junho de 2012

Junho


Eu vim em passos hesitantes porque não queria entrar no mês de junho. Queria o "infinitamente maio" de Guimarães Rosa, maio de touros e de voo e de terra e pedra e ilha. E eu entrei em junho doente e desejando voltar. E junho entrou em mim anunciando inverno. Chovia. Eu não queria entrar.

Então me afundei em um tempo longínquo... No tempo do tempo do qual não entendo nada. Eu estava no chamado "segundo jardim" da escolinha, tinha quatro ou cinco anos de idade. Na minha classe havia esse garoto: as fotos delinearam seu rosto em minha memória, mesmo tantos anos depois. Nós dois vestidos de caipiras, na festa junina. Ele rechonchudo, com bigode pintado, eu magrela com pintinhas no rosto. Fazíamos par. Mais do que isso: os adultos insistiam em dizer que éramos namoradinhos. Não éramos. E eu não gostava nada dessa história. O fato é que não me lembro de brincarmos juntos, não me lembro de nossas conversas, se é que havia. Eu era uma criança calada.

Mas de uma coisa me lembro...

Todo recreio, nós nos dávamos as mãos e saíamos a andar, assim, de mãos dadas. Nunca entendi o motivo e nunca soube do início. De quem foi essa ideia? Quando, pela primeira vez, nos demos as mãos e por iniciativa de quem? Sei que andávamos juntos, todo dia, religiosamente e em silêncio. Era nosso ritual cotidiano de caminhar pelo pátio. Diariamente nos dávamos as mãos, com a confiança da criança que não tem motivos. Seu nome era Junho, como o mês.

E, porque é junho de novo, eu penso que devo seguir. "É preciso continuar a travessia" - fui me repetindo enquanto subia a Pedra sozinha e descalça, já que meus chinelos se perderam no caminho. Era a primeira vez que subia sozinha. Era a primeira vez que fazia todo o trajeto descalça. A primeira vez que voltava no escuro, com uma lanterninha em mãos. Confesso que no final do trajeto tive medo, ao ouvir os barulhos da floresta. Desses medos inexplicáveis que não são de gente, nem de bicho e nem de fantasma, mas um medo instintivo e enigmático que vem de se estar à noite sozinha no meio da mata.

Medo da solidão.

Mas é junho. Junho, como o garoto. É preciso seguir. E, mesmo que eu não entenda, será mais fácil se alguém me pegar pela mão.

Continuar a travessia é sempre inauguração.